CRÍTICA: Um Dia de Cão (1975)
- Revista Curió
- 6 de nov.
- 5 min de leitura
O assalto que motivou um filme, que motivou outro assalto… que motivou outro filme
Por: Felipe Lemos e Laura Torres
Última atualização: 06/11/2025

Baseado em um incidente do ano de 1972, Dog Day Afternoon (1975), em seu nome original, conta a história de Sonny Wortzik (Al Pacino), um homem que tenta assaltar um banco no Brooklyn para financiar a cirurgia de redesignação de gênero de sua amante, Leon (Chris Sarandon). O que deveria ser um crime rápido se transforma num longo cerco policial, transmitido ao vivo pela mídia e acompanhado com crescente tensão pela população. Ao contrário de cineastas com estilos visuais mais chamativos, o diretor Sidney Lumet nunca buscou chamar atenção para a câmera: seu foco estava no ritmo narrativo e na densidade emocional dos personagens.
Logo na abertura do filme em análise, é curioso como o diretor filma toda Nova York e, minutos depois, a câmera é enjaulada dentro de uma agência bancária de bairro — refletindo bem o enredo: toda ação é movida por dinheiro. Ele provoca desde o início um riso meio subversivo – bakhtiniano de alguma maneira – e introduz discretamente suas críticas à sociedade norte-americana em meio a um grande “surto” do protagonista.
Desde denúncias à violência policial, à correlação entre questões econômicas e pautas trans, Lumet não só equilibra política e leveza como sustenta seu longa nessa tensão. Esses pontos entram em evidência quando Sonny grita “Attica!”, evocando a rebelião brutalmente reprimida em uma penitenciária de Attica poucos anos antes, usando esse grito como argumento para mobilizar a multidão e tornando a polícia, até então autoridade indiscutível, a vilã pública diante das câmeras e das reações da plateia.
Lembremos: Sonny se arrisca nessa empreitada para conseguir pagar a transição de gênero de Leon. Essa motivação estabelece uma importante ponte entre questões econômicas e pautas de identidade de gênero. O filme apresenta a transgeneridade de forma empática e complexa, expondo a precariedade que cerca as decisões mais íntimas de pessoas marginalizadas.

Além dessas questões, Um Dia de Cão possui diversos pontos positivos que valem menção. É difícil não começar falando das interpretações de Al Pacino e John Cazale, que atua como Salvatore ‘Sal’ Naturile, o parceiro de Sonny no crime. Fora o interessante contraste das personalidades e dos papéis de cada um no assalto, (marcante nos momentos mais eufóricos e ao mesmo tempo inseguros de Sonny, enquanto Sal mantém certa serenidade até no desespero), a conciliação entre o cômico e o dramático agrega as atuações.
Pensando na ambientação, a forma como o diretor trabalha os espaços é espetacular. À medida que o assalto vai crescendo, desde os cochichos dos criminosos para as passagens dos jornalistas, o cenário também se amplia. O plano geral do banco, por exemplo, quando Sonny tenta abrir a caixa com a arma, revela não só a precariedade da tentativa de assalto, como também reforça o aspecto cômico da cena para o espectador: tudo é tão improvisado e falho que beira o patético.
Do banco para a rua, da rua para a esquina, da esquina para o quarteirão - e por aí vai -, Lumet constrói um cenário de caos. Os planos entre vitrines que conectam o banco à barbearia vizinha, a presença constante dos helicópteros e, principalmente, o uso da televisão como canal de transição para outros ambientes, mostram como a narrativa se desdobra não só no espaço físico, mas também no simbólico. No decorrer do enredo, o cerco deixa de ser apenas policial e também se apresenta como midiático e social.
Outro elemento chave dessa tensão cômica é a relação entre os reféns e os assaltantes. Mais do que o apoio popular na rua, é o "consentimento" dos bancários que viabiliza a loucura. As cenas em que os reféns escolhem o sabor da pizza, ou quando uma das funcionárias liga para o namorado avisando que não vai chegar para o jantar, são emblemáticas e revelam um paradoxo: o ambiente de sequestro, por mais absurdo que pareça, vira para alguns uma experiência contraditoriamente libertadora. Enquanto Sonny se apega à posição de poder, as mulheres parecem confortáveis naquele limbo. O destino consumado faz daquilo uma grande procrastinação, uma fuga da monótona rotina.

Por mais que seja possível notar certa morosidade no decorrer da trama - também pela natureza do roteiro -, a lentidão construída é ambígua. A forma como o filme é estruturado é veneno e remédio: da mesma maneira que dialoga bem com elementos imagéticos, o roteiro se arrasta na procrastinação que constrói. Há um mal-estar que se acumula a partir da demora, como um calor que não passa, uma espera que cansa, mas é justamente nesse tédio que Lumet encontra espaço para aprofundar os personagens e criar tensão sem recorrer a cortes rápidos ou qualquer tipo de trilha sonora. O que não deixa de influenciar na experiência do espectador.
Nota: 4/5
Um pouco mais sobre a obra de Sidney Lumet
Lumet nasceu em 1924, na Filadélfia, e cresceu em Nova York, cidade que se tornou o cenário recorrente em seus filmes. Ele é considerado por muitos um dos grandes mestres do cinema norte-americano do século XX, conhecido por seu estilo despretensioso e obras que frequentemente exploram questões éticas e sociais. Seu cinema era marcado por um forte senso de justiça e profunda preocupação com o indivíduo frente às instituições de poder, especialmente o sistema jurídico.

Sua estreia como diretor no cinema foi fenomenal: Doze Homens e uma Sentença (1957), um filme rodado quase inteiramente em uma única sala — já indicando sua predileção por espaços fechados, que capturou com intensidade o drama psicológico de um júri decidindo o destino de um jovem acusado de assassinato. A obra não só lhe rendeu aclamação imediata, como definiu o tom de grande parte de sua carreira: personagens colocados diante de dilemas morais complexos.
Ao longo de cinco décadas de trabalho, Lumet construiu um currículo impressionante, dirigindo mais de 40 filmes. Entre os mais célebres estão Assassinato no Expresso Oriente (1974), Serpico (1973) e Um Dia de Cão (1975), sendo os dois últimos estrelados por Al Pacino e centrados em figuras que desafiam o sistema policial corrupto. Além de Rede de Intrigas (1976), uma crítica à indústria midiática que lhe rendeu quatro Oscars, incluindo o de Melhor Ator para Peter Finch e Melhor Atriz para Faye Dunaway.
50 anos depois, os bancos continuam inseguros…
Já em solo brasileiro, o longa Assalto à Brasileira (2025), dirigido por José Eduardo Belmonte, tem como foco o roubo ao Banestado (Banco do Estado do Paraná), ocorrido em 1987, na cidade de Londrina. Previsto para estrear em 2026, o filme chama a atenção do público por estabelecer uma forte relação com a obra Um Dia de Cão, por ambos tratarem de um assalto real a uma agência bancária que se transforma em um espetáculo midiático no decorrer do dia.

Tanto Lumet quanto Belmonte não retratam os criminosos como vilões, mas apresentam personagens humanizados que são produtos de um sistema opressor. Em uma das sessões comentadas da 19ª CineBH, Belmonte revelou uma curiosidade: há um rumor de que, uma semana antes do assalto em Londrina, o filme protagonizado por Al Pacino foi exibido em um canal de TV aberta, o que teria inspirado os assaltantes.
Em Um Dia de Cão, Lumet constrói uma narrativa que parte de um assalto real para discutir questões sociais, políticas e humanas com sutileza e precisão. As atuações dos protagonistas contribuem para a tensão crescente, assim como a ambientação, que se expande aos poucos e acompanha o caos da situação. Mesmo com um ritmo mais lento, o filme utiliza esse tempo para desenvolver os personagens e aprofundar os conflitos.
No fim, o diretor estadunidense transforma um episódio isolado em um retrato contundente das contradições sociais e individuais do período, enquanto Belmonte faz valer o termo “à brasileira” que está no título, representando uma certa desenvoltura na maneira de lidar com situações complexas que é característico da realidade do país.

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