Para quem são feitos os filmes de Super-Herói?
- Revista Curió
- 14 de ago.
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Com o início de uma nova era para os filmes de herói, traçamos um histórico para entender para quem esses filmes estão sendo produzidos
Por: Gabriel Monteiro e Pedro Fraga
Última atualização: 14/08/2025

Nos últimos 20 anos, o cinema de Super-Heróis foi determinante para estabelecer os padrões dos blockbusters. Tendo como carro chefe dessa revolução a Marvel Studios, os títulos deste gênero se adequaram a uma estrutura de marketing e a um modo bem padronizado de fazer filmes, sustentado principalmente pela maneira como os personagens e histórias diferentes se interligam. Com a experiência altamente lucrativa da empresa do Capitão América e Homem de Ferro, o desejo de muitos estúdios se concentrou em tentar reproduzir a experiência de um universo cinematográfico.
Neste contexto, a principal concorrente da Marvel foi a DC Studios, produtora já conhecida dentro dos quadrinhos e responsável pela criação de grandes heróis da cultura pop. Encabeçada por Zack Snyder a partir de O Homem de Aço (2013), esse outro universo cinematográfico propunha sua própria personalidade – mais sóbria, mais pessimista e um tanto preocupada em criar dilemas morais para os espectadores. Mesmo com uma proposta interessante, esse projeto foi recheado de falhas a partir do desencontro entre o diretor e a produtora, resultando em filmes com baixa aceitação do público e da crítica, resultando em uma iminente derrocada.
Passados vários anos, entre sucessos e fracassos, ninguém obteve o mesmo sucesso que a Marvel. Porém, depois de alcançar o ápice com Vingadores: Ultimato (2019), que marcou o fim de uma era com uma mobilização histórica nas salas de cinema, a produtora foi dada como esgotada dentro de suas fórmulas e sem arcabouço criativo tanto pelos fãs da marca como também pela crítica. Com a insatisfação do público e os resultados decrescentes no mercado de filmes de herói, criou-se uma certa expectativa sobre como essas empresas contornariam a "má fase".
Após inúmeras produções esquecíveis e desesperadas por criar um senso de unidade, junto de problemas ainda mais graves – como as denúncias de agressão sexual contra Jonathan Majors, ator que viria a ser o principal vilão dessa nova saga– a Marvel teve como válvula de escape se limitar a ser mais do mesmo, como demonstrado pelo anúncio de Robert Downey Jr. de volta ao Marvel Cinematic Universe (MCU) no papel de Doutor Destino.
Por outro lado, após esporádicos sucessos com produções com mentalidades individuais, a DC Studios começou o processo de criação de um universo cinematográfico encabeçado por James Gunn, figurinha carimbada na Marvel (principalmente pela franquia Guardiões da Galáxia), que no novo estúdio tem a missão de recriar Superman e outros importantes personagens a partir de outra visão artística, completamente diferente daquela adotada por Zack Snyder.
Em 2025, um novo filme do Superman foi lançado, introduzindo o novo universo da DC. Por sua vez, a Marvel parece recalibrar a rota ao conseguir, depois de um bom tempo, lançar dois filmes com aprovação popular. Mesmo falando de empresas multimilionárias que movimentam uma enorme indústria internacional, a relação com o público consumidor é um dos principais fatores para se alcançar o sucesso (ou não). Este também é o fator capaz de engatilhar drásticos processos de mudança dentro desse sistema de produção. Mas afinal, qual é a face desse público tão poderoso? Como a relação entre empresas e consumidores fala sobre o material produzido e, principalmente, aquele que ainda chegará às telonas nos próximos anos?
A Jornada do Nerd na telona

Desde que surgiram, na metade do século XX, as histórias em quadrinhos sobre Super-Heróis são direcionadas a um público bastante específico e dedicado, muitas vezes rotulado como nerds, sendo uma relação que costuma se iniciar na infância ou adolescência. Com o passar do tempo, este grupo cresce e migra para uma posição de maior poder de consumo, o que, somado ao avanço das tecnologias de comunicação, estimula a representação desse mesmo grupo nas telonas. É nesse cenário que surgem sucessos de bilheteria como os filmes das franquias X-men e Homem-Aranha, que contribuíram bastante para a disseminação da cultura nerd (especialmente a norte-americana) em todo o mundo.
A virada principal ocorre através da consolidação da Marvel Studios, que emplaca uma sequência de sucessos utilizando da fórmula do universo compartilhado – ideia fortemente inspirada pela forma como as histórias em quadrinhos, de onde os personagens se originam, usam para contar suas histórias há décadas. Diante dessa incorporação no meio comercial, o nerd passa de uma posição de minoria nichada para se tornar alguém que fala de seus interesses pelos meios de comunicação, sendo tratado com um grau maior de seriedade e ganhando destaque e tração. Os estúdios de cinema entenderam que devem agradar esse “novo” público que compra milhares de produtos e até constrói carreiras ao redor dessas imagens para que possam se manter de pé.
É preciso entender que os desejos e prioridades desse grupo nem sempre são os mesmos do público tradicional do cinema. Se a fórmula do universo compartilhado já serve como uma conexão entre a tradição das histórias em quadrinhos e os filmes, essa ponte também é vista como uma possibilidade de trazer ainda mais elementos para uma nova mídia, valorizando preciosismo e apego a um cânone preestabelecido.
Personagens e histórias podem ser aclamados ou rechaçados de acordo com sua verossimilhança ao material que buscam adaptar, questão essa alimentada por uma nostalgia fervorosa e que reduz o espaço destinado à expressão individual de novos autores. Assim, a Marvel Studios passa a produzir com muito sucesso de forma retroalimentativa, através da tática mercadológica de fidelidade e exclusividade: aqueles que mais investirem no consumo de cada peça daquele universo serão presenteados com mais e mais peças referenciais, que juntas formam um aparato de linguagem destinado especificamente a esse público. O ser nerd aqui não é mais apenas aceito –é recompensado. Mas assim como o fracasso da DC de Zack Snyder vem ao não atender totalmente os desejos de seu público, a crise do Marvel Studios surge justamente por seguir essa proposta à risca, pois eventualmente esses anos de cinema industrial, que valorizam a satisfação de um “fã clube” antes da produção artística, fizeram com que o público geral virasse as costas para a empresa diante se uma sentida saturação. É a dita fadiga dos filmes de super-herói.
“Não acredito que exista uma ‘fadiga de filmes de super-herói’, acredito que exista uma fadiga de filmes medíocres”, é o que afirma James Gunn em entrevista ao portal americano GQ, durante a divulgação de seu novo filme Superman (2025). Essa fala representa bem possíveis frutos dos questionamentos que têm sido feitos no atual momento do cinema de herói: “qual o verdadeiro problema aqui?”, “como essa crise pode ser revertida?”, “qual o caminho a seguir daqui em diante?”.
O fato é que as empresas desse mercado estão passando por um momento de transição e consequente reformulação, tanto em forma (como a transferência para uma outra mídia, como as séries de TV), quanto em conteúdo. Isso se reflete não apenas no que está sendo produzido, mas em como e para quem aquilo está sendo comunicado.
Um novo começo para os filmes de herói
Quarteto Fantástico (2025) representa uma espécie de tentativa “fantasma” de revitalização dentro da Marvel Studios, já que em algumas produções recentes a produtora vem se apoiando em breves variações estéticas para criar um senso de autoralidade entre as produções, mesmo sem grandes mudanças na forma de contar e no tipo de suas histórias. Com Quarteto, o estúdio decide mergulhar de vez na construção de um universo imagético único e, mais do que antes, é capaz de extrair o melhor dessa abordagem.

Por meio da ambientação retrofuturista voltada para as representações clássicas da América do Norte dos anos 1950 e 1960, além de uma linguagem gráfica coberta de ilustrações, montagens e cenas que refletem o mesmo período dentro de outras mídias, o filme reconhece e homenageia o momento áureo das histórias desse super grupo nas páginas dos quadrinhos de onde vêm. Somada a carismática interpretação de um elenco de estrelas, o filme também se beneficia da capacidade de “ignorar” (na medida do possível) o cânone do universo cinematográfico da Marvel, ao se situar numa realidade alternativa. O resultado é uma experiência menos dependente de uma rede referencial entre filmes e o mais próximo que o estúdio chegou nos últimos tempos de uma conquista individual.
Por outro lado, o filme não se emancipa da necessidade de priorizar a conexão com seu público dedicado acima da construção artística e criativa, o que limita os caminhos traçados pela história, contada por meio de uma narrativa simples e pouco ambiciosa. Na tentativa de provocar interpretações subtextuais, há trechos que falam de família e comunidade como elementos inseparáveis para a prosperidade da humanidade, utilizando o quarteto não como um conjunto de deuses “sobre-humanos”, mas de servidores à população que os cerca.
Apesar da temática bastante interessante e pertinente na realidade atual do mundo, a falta de um lugar adequado para essas ideias no enredo, em função de abrir espaço para as prioridades da persona nerd, mais uma vez afasta a figura do super-herói das questões humanas e faz com que a discussão não floresça. A partir da metade do filme, esse elo fraco não consegue mais se esconder atrás de outras qualidades apresentadas e desaparece do imaginário do filme. Mais uma vez, isso reflete no mercado, já que apesar de conquistar o topo das bilheterias na estreia, em pouco tempo os números caem drasticamente. De certa forma, isso indica que, para o grande público – aquele que não se enquadra no sistema retroalimentar vigente na Marvel –, ainda não houve camadas suficientes para conectá-lo ao que o filme teria para dizer.
Já o novo Superman da DC Studios se apresenta com a mesma responsabilidade carregada por Homem de Aço (2013) – como o filme que irá ditar o rumo da empresa daqui para frente. No entanto, ao invés de criar um épico assumindo heróis como deuses, assim como pensado por Snyder, a ideia era clara: um Superman mais humano.

A recepção positiva veio acompanhada de algumas reclamações, tanto por alguns fãs ecomo por veículos de comunicação, sobre o fato de o herói demonstrar ser fraco e apanhar demais. Apesar disso, o projeto de James Gunn resultou em uma obra autoral com uma visão de mundo não necessariamente nova, mas pouco usual nos filmes de herói dos últimos anos: um super-humano cuja ênfase está no humano ao invés do super.
Se em Capitão América: Guerra Civil (2016) os super heróis protagonizam um embate discutindo os limites das ações de seres sobre-humanos e as mortes decorrentes das operações que eles faziam, Superman sequer abre espaço para pensar em outro resultado que não seja salvar todas as vidas possíveis. Mesmo que sem êxito em alguns momentos, o longa quer se aproximar do público geral ao mostrar um herói que se preocupa com o próximo: ele não está salvando estatísticas, mas pessoas. Se um monstro Kaiju está destruindo a cidade e pode cair em cima de um prédio, a primeira preocupação é tentar impedir que esse monstro cause essa destruição.
A partir disso o elemento de luta do filme se torna algo secundário, sem que o clima de tensão e o interesse do espectador se percam. Chamar esse herói de “fraco” mostra o estranhamento de um público nerd acostumado com as eventuais estruturas de uma narrativa que utiliza de grandes batalhas e violência a todo momento, sendo que aqui os conflitos principais do Superman são com ele mesmo.
James Gunn inclusive inverte ainda mais as expectativas ao caracterizar os pais biológicos do protagonista como colonizadores, que enviaram o filho para dominar a Terra, quebrando uma estrutura bastante conhecida da mitologia do personagem. Além de trazer mais camadas para a trama, a decisão intensifica ainda mais a confusão de sentimentos de um homem comum, assumido como o que sempre foi: um imigrante dentro dos Estados Unidos, alvo de ódio e preconceito, constantemente buscando seu lugar no mundo e onde se apoiar.
Mesmo com vários clichês do cinema de Super-Herói, elementos referenciais de nicho e a introdução de um novo universo cinematográfico, é um filme inventivo, divertido e que fala diretamente com o grande público de diferentes origens e idades. Através de uma mensagem ética universal, porém acompanhada de um debate real e dedicado, o filme não abre mão do nerd que já consome esse universo. Pelo contrário, expande a capacidade de conexão para além dessa bolha, engrandecendo a experiência e trazendo o cinema de herói para mais perto do debate cinematográfico como um todo.
Apontar um filme de um estúdio multimilionário como qualquer tipo de “revolução” dentro da indústria seria cometer um fortíssimo exagero. Mesmo assim, é possível interpretar esse momento de adaptação como um “bom sinal” e concluir que ainda existem possibilidades de se criar e se comunicar dentro de um braço da mídia que para muitos parecia esgotado.
Os Super-Heróis não precisam ser apenas bonecos fictícios de disputa de poder como muitas vezes foram tratados. Em sua origem, serviam como projeções de sonhos, medos, ânsias e inseguranças e, assim como as criações das mitologias antigas, são seres imaginários criados pela humanidade para falar de si mesma. De lá pra cá, o mundo mudou e continua mudando, mas talvez ainda seja possível usar essas ferramentas de comunicação para ajudar a compartilhar a experiência única do que é ser humano.
É uma discussão bem interessante, até pela forma como esses dois filmes foram colocados como a "salvação" de suas respectivas empresas. Mas logo nos bastidores ficava claro que um dos projetos era muito mais precário que o outro.
Em paralelo, são o mesmo filme, mas fica clara a diferença quando um pensa muito mais na preservação da vida, o Superman não tá nem aí para salvar prédios ou tecnologia, ele salva vidas, o outro tenta muito construir um sentimento familiar de que o que está em crise não é o mundo ou as pessoas dele, mas a família (eles só salvam pessoas no prólogo).
Como bem disseram, a DC sempre teve um ar autoral mais sólido e arriscou experiências imagéticas…