A cidade como um produto
- Revista Curió
- 29 de jul.
- 3 min de leitura
Como a cultura se transforma em objeto de desejo dentro dos centros urbanos?
Por: Thiago Daniel
Última Atualização: 28/07/2025

Uma cidade, em termos sociológicos, pode ser definida como um núcleo relativamente grande, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogêneos. A permanência desses indivíduos em grandes centros urbanos precisa ser incessantemente conquistada. Para isso, a cidade, diferente do mundo rural, precisa fornecer atrativos para seus moradores, como boas universidades, sistemas de saúde adequados, transporte e, principalmente, lazer. A cidade é refém, então, de um eterno fornecimento de serviços e produtos para que a sua densidade populacional aumente e a capacidade produtiva do centro urbano floresça. O que é interessante analisar aqui, é como serviços considerados básicos assumem a lógica da atratividade. Saúde e educação, por exemplo, deixam de ser um direito e passam a ser considerados critérios de atração populacional. O perigo disso, além da mercantilização de serviços básicos, é o esvaziamento de tudo aquilo que o classifica como essencial. Com a cultura, o lazer e o entretenimento, o buraco fica um pouco mais embaixo.
Em diálogo com esse fenômeno, Ana Maria Fernandes, professora titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, estabelece, em “Cidades e Cultura: rompimento e promessa”, que, dentro das cidades, existe uma presentificação do tempo que nos afasta drasticamente do passado, das referências e das tradições. Ela diz que, na cidade, o presente não é visto como consequência do passado, mas sim como algo completamente descolado do tempo. Essa extensão oceânica do tempo e da cultura, que tem seus conteúdos reduzidos a objetos e repertórios, ficam suscetíveis à apropriação pelo mercado e pela sociedade de consumo, o que casa perfeitamente com a noção de que cidade precisa funcionar como um mecanismo de atração (de capital, de mão de obra qualificada, de turismo). Pense no momento em que você escolhe uma casa. Além do imóvel te atender em condições físicas, você também repara em elementos externos: está perto do supermercado? Quais meios de transporte eu vou ter acesso? Tem lazer e cultura próximos? E parques?
Fica evidente, então, que, há muito, a cultura e a arte deixaram de ser uma questão de entretenimento, aprendizagem ou a manifestação de algo popular. Viver na cidade significa viver num mundo que define o acesso à cultura e a própria cultura como produtos a serem vendidos, comercializados e consumidos. E tudo numa velocidade fora do comum. Pense em grandes festivais. Quais marcas você associa a eles? Pense em artistas que dominam os topos das paradas musicais. Por qual motivo o sucesso comercial é mais valioso que a obra de um artista? Existe uma lógica de esvaziamento que se manifesta através do mercado e que transforma tudo o que é cultura em produto. O termo “produção cultural” reflete isso. O desafio de quem vive nas grandes cidades é entender até que ponto algo é arte/cultura e até que ponto algo é a materialização do conceito da atratividade.
Fazer cultura, hoje, é viver numa zona de fogo de interesses comerciais que, muitas vezes, inviabilizam a produção de eventos, filmes, álbuns musicais, carreiras artísticas e outras expressões culturais pelo medo do fracasso de vendas. A lógica mercadológica é tão enraizada que projetos culturais dependem de patrocínios e incentivos que vão muito além do fazer artístico. Hoje, mais importante que a cultura é o dinheiro e a marca que a tornam comercialmente possível. Nossa sorte é que a cultura de rua segue florescendo, mesmo com todas as tentativas de deixá-la infértil. Desde a cena ballroom até as batalhas de MC, o corre acontece com e sem grana. É nas margens que a cultura pulsa livre de uma mercantilização que regula e pune projetos que não apresentam retorno financeiro instantâneo. Que nossos olhos se voltem para as potências que ocupam esses espaços e que fazer cultura seja mais parecido com o que se vive nesses espaços do que com o que mercado decide como rentável. Que a ruptura seja mais atrativa do que o que se vende como produto dentro das nossas cidades.
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