Do objeto ao símbolo: a dimensão afetiva do copo lagoinha em BH
- Revista Curió
- 5 de set.
- 6 min de leitura
Mais do que um utensílio, o Lagoinha carrega histórias e memórias que marcam a identidade da capital mineira
Autores: Sofia Laura e Filipe Ribeiro
Última Atualização: 31/08

Seja nas mesas de bares, nas bancadas das padarias da cidade ou tatuado nos corpos dos boêmios, o copo lagoinha se firmou como um ícone extremamente cultuado em Belo Horizonte. Sua simbologia, que perpassa a formação histórico cultural da capital, se consolida numa dimensão afetiva e de pertencimento aos cidadãos. Com mais de sete décadas, o copo reúne História e histórias em seu design charmoso.
Mas é copo americano ou lagoinha?
Originalmente nomeado copo americano, o modelo foi criado na década de 40 pelo empresário e industrial Nadir Figueiredo e recebeu esse nome por conta das máquinas em modelo estadunidense em que era produzido, em São Paulo. O copo passou a ser comercializado em Belo Horizonte pela primeira vez somente na Mercearia Irmão Vaz de Melo, que ficava na região da Praça Vaz de Melo, no Complexo da Lagoinha. O local, que não resistiu ao projeto do complexo viário, abrigava um movimento de comércio durante o dia e de boemia pela noite afora e o copo servia de cafézinho logo cedo à pinga nas altas horas da madrugada.
Com 190 ml de capacidade e uma resistência à prova de balcão – o dono da mercearia, Joaquim Septimo Vaz de Melo, ou Seu Quimquim, o batia na grande bancada de pedra para provar a eficácia –, o copo se tornou ideal para os boêmios: anatomia confortável e tamanho perfeito para manter a cerveja gelada ou tomar a dose exata de café. Ganhando fama, recebeu o nome de Copo da Lagoinha, popularizado principalmente por seu Quimquim e, posteriormente, pelo hábito mineiro de se reduzir afetivamente algumas expressões, se tornou o famoso Copo Lagoinha.
Com o passar dos anos, o copo lagoinha consolidou-se como um símbolo da boemia e da cultura botequeira belorizontina. Mas, nos anos 90, foi o “Copo Americano” que foi exposto no MoMA, em Nova Iorque, como um ícone do design moderno brasileiro, modernidade esta que foi responsável por sucatear a região histórica que firmou grande parte da história cultural belorizontina responsável pela simbologia por trás do copo. Sobre isso, o publicitário Filipe Thales, fundador do Viva Lagoinha e cofundador do Circuito Lagoinha reconhece que, mesmo antes do movimento econômico e cultural, a região nasceu abrigando diversidade: “Quem veio construir a cidade de Belo Horizonte, lá em 1845, 1847, morou aqui. Vieram africanos, portugueses, sírios, italianos. A zona boêmia era onde a vida, de fato, acontecia”.

Na década de 70, em uma iniciativa de “progresso” para a cidade, aumentando as vias automobilísticas, projetou-se um complexo viário ali onde era a Praça Vaz de Melo. Assim, no começo dos anos 80, os boêmios tiveram que se despedir da região e a canção Adeus Lagoinha, composta pelos famosos sambistas belorizontinos Gervário e Milton Horta, marcou o acontecimento
Adeus, Lagoinha, adeus
Estão levando o que resta de mim
Dizem que é força do progresso
Um minuto eu peço
Para ver seu fim
Adeus, Lagoinha.
A canção critica com sentimentalismo o falso progresso que aniquila regiões culturais e desintegra a história da cidade, apagando importantes locais de convivência e resistência da população. Um embate histórico, e que nunca se cessou, entre o povo e o imperativo do governo. “Hoje, 40 anos depois, a gente vê o resultado, que é essa área de acesso complexo, restrita por viadutos e passarelas pequenas. E foi isso que fez com que o bairro fosse isolado”, diz Filipe. Alvo de baixa estima pelos cidadãos e pelo governo, o receio é que fique perdida na poeira do tempo a história cultural desse espaço, cenário que consolidou muito do que se tem como cultura belorizontina.
Resistência na palma da mão
O resgate do copo lagoinha como símbolo de resistência cultural foi um grande mote para impulsionar o carinho dos belorizontinos por ele. Em 2019, houve uma petição eletrônica para a Nadir reconhecer o apelido charmoso como um nome oficial, o movimento foi uma ponta de todo o projeto de Filipe Thales e seus parceiros do Viva Lagoinha, que buscam chamar atenção para a problemática estrutural do espaço que antes fora palco de grandes acontecimentos da cultura de BH. Eles promovem passeios turísticos, rolês guiados e muitas outras iniciativas culturais ligadas à cena de BH.
"Nossa missão é levar, junto com o copo, essa mensagem e as nossas ações que a gente tem feito aqui, que é mitigar a problemática estrutural e transformar esse lugar, que é pejorativamente conhecido como Cracolândia, em um corredor cultural, que é o que a Lagoinha sempre foi e mereceu. A Lagoinha é o lugar que deu a alegria para a cidade." (Filipe Thales)
Da casa do mais rico ao mais pobre, é o mesmo copo que mantém a cerveja gelada e mais gostosa. Para Filipe, simbolicamente, falar do copo é movimentar sua importância, “a gente está falando de algo que é resistente, charmoso e democrático”, como toda a história que o circunda.
De objeto a pertencimento
O lagoinha é mais do que memória histórica: ele também é lembrança íntima. Basta perguntar a qualquer belo-horizontino e surgem respostas diversas: o pai brindando a primeira cerveja da sexta-feira, a tia servindo café de bule preto ou o tilintar de copos numa mesa lotada de bar. Cada gesto revela como esse pequeno objeto acompanha momentos que atravessam gerações.
Em uma palavra, o que o lagoinha representa? “Amizade”, dizem alguns. “Democracia”, arriscam outros. Há também quem resuma em “mineiridade”, “resistência” ou “afeto”. Cada resposta mostra que não se trata apenas de um copo, mas de um elo afetivo que une experiências individuais a uma memória coletiva.
Situações marcantes não faltam: a cerveja gelada que acompanhou uma paixão de verão, a pinga dividida na roda de samba, o café do pós-velório que conforta em silêncio. Discreto, o copo está sempre presente, testemunha de encontros, despedidas e risadas. Talvez seja essa onipresença que o torna tão nosso: o lagoinha é cenário e personagem ao mesmo tempo.
Mais do que utensílio, virou idioma afetivo. Em BH, não se pede “um copo de cerveja”: pede-se “um lagoinha”. Ao falar dele, falamos também da cidade, de sua capacidade de acolher, de transformar o simples em símbolo, de reinventar o cotidiano em cultura. Ele cabe na palma da mão, mas dentro dele se guarda um pouco da história e da boemia belo-horizontina.
Entre os recém-chegados a BH, é comum estranhar o nome: para quem cresceu em outras regiões, ele será sempre o ‘copo americano’. Só depois de viver a cidade é possível entender que não se trata de apenas um nome ou apelido, mas de algo que vêm da dimensão sociocultural de pertencimento.
Filipe Ribeiro, coautor desta reportagem, também guarda uma relação íntima com o lagoinha. Natural do interior de São Paulo, ele conta que, no começo, estranhava o nome: para ele, era apenas o “copo americano”, aquele das padarias e da casa da avó. Foi só vivendo em Belo Horizonte que compreendeu não se tratar de nomenclatura, mas de pertencimento. O lagoinha, descobriu, não é um copo qualquer: é parte da cidade, de sua história e do jeito mineiro de viver a vida.
Ele lembra de uma noite no Mercado Novo, depois de algumas cervejas, em que decidiu tatuar o lagoinha no calcanhar. Talvez fosse o álcool, talvez a emoção de se sentir finalmente parte da cidade. Mas, naquele momento, entendeu que o copo significava resistência e identidade, muito mais do que apenas um objeto. A Lagoinha, que sobreviveu a apagamentos, hoje é revisitada metonimicamente pelo que originou e marcada no corpo dos belorizontinos boêmios.
Marcas no corpo e na história
Victor Matoso, de 26 anos, que recentemente quis homenagear sua paixão pela cultura mineira dos botecos, e nada mais simbólico do que a escolha do copo em um selo que comporta a imagem do mapa de Minas Gerais:

"O copo Lagoinha (não americano!) significa pro povo mineiro não somente um instrumento pra carregar um café ou uma cerveja, ele é a representação da mineiridade em sua essência e toda a simplicidade e aconchego que ela carrega consigo. Toda esquina de Minas Gerais tem um boteco, todo boteco tem um copo Lagoinha e nele toda cerveja fica mais gelada e toda prosa fica mais gostosa."
Outro relato reforça essa grandiosidade da dimensão afetiva é o de Juliana Del Cantone, de 36 anos:
"Minha tatuagem de Copo Lagoinha é mais do que apenas uma marca no meu corpo, é um símbolo da minha paixão pela cultura belo-horizontina e pelo espírito dos butecos. Ter essa tatuagem é uma forma de homenagear a cidade que amo e a cultura que me inspira. É um lembrete constante da importância de aproveitar os momentos simples da vida e de valorizar as coisas que realmente importam."

10 anos separam esses boêmios, gerações diferentes que compartilham de uma mesma paixão. Essas histórias mostram que o Lagoinha não é só peça de museu, mas símbolo vivo. Ele se reinventa, se tatua na pele e na memória. Ao mesmo tempo em que remete à Lagoinha de Seu Quimquim, hoje pulsa nas mesas do Mercado Novo, nos bares de esquina e nos festivais culturais. É um copo que insiste em existir, que resiste ao esquecimento e que guarda, na simplicidade do vidro, a complexidade da história de Belo Horizonte.
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