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Até onde vai a arte drag?

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 30 de set.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 1 de out.

Por trás do espetáculo, nasce e se expande um mercado fora dos holofotes


Por: FERSI e Joanna Mescladi

Última Atualização: 30/09/25


Mira MiuMiu por Victor Senador
Mira MiuMiu por Victor Senador

A arte drag transcende os limites do palco, revelando-se como um universo multifacetado que abrange diversas habilidades e atividades profissionais. Além das performances, muitas drags se destacam como maquiadoras, estilistas, peruqueiras, produtoras culturais e fotógrafas, construindo um ecossistema criativo e econômico que pulsa nas cidades. Por meio dessas múltiplas competências, as artistas criam trabalhos autorais através da própria arte drag e, ao mesmo tempo, conseguem expandir e diversificar seus campos de atuação, agregando habilidades específicas que potencializam tanto sua relevância cultural quanto suas possibilidades econômicas.


Belo Horizonte se consolidou como um polo de referência na arte drag, com uma cena vibrante e em constante crescimento, com festas, coletivos e espaços culturais que celebram a diversidade e a expressão artística drag. A participação de drags locais em programas internacionais, como Aquarela e Mellody Queen no Drag Race Brasil, também coloca BH em evidência no cenário nacional e mundial. 


Apesar do reconhecimento crescente, atuar como drag em Belo Horizonte vai muito além das apresentações nos palcos. Muitas dessas artistas transformam sua criatividade em diferentes áreas profissionais: são maquiadoras que atendem clientes, estilistas que produzem figurinos sob medida, peruqueiras que confeccionam cabelos e acessórios, e produtores que organizam eventos e movimentam a cena cultural. Cada uma dessas funções não apenas amplia a presença das drag queens na cidade, mas também sustenta uma cadeia criativa que gera renda, fomenta empregos indiretos e fortalece redes de colaboração entre artistas, produtores e marcas locais. Ainda assim, esse impacto econômico e cultural é pouco reconhecido pelos órgãos públicos e até mesmo pelos cidadãos, revelando um desafio central: como valorizar de forma justa quem transforma sua arte em motor de desenvolvimento para a cidade? 


Entre estética e história, o cabelo se torna expressão de identidade e poder


O cabelo, na cultura, sempre foi muito mais do que um detalhe estético. Ele carrega histórias, demarca identidades, é símbolo de resistência e também fonte de autoestima. 

Entre as múltiplas expressões da arte drag, as perucas ocupam um espaço fundamental. Mais do que um adereço, elas se tornam extensão da identidade, da performance e até mesmo um instrumento de trabalho para quem se dedica a transformá-las. A drag Mira MiuMiu encontrou nas perucas um caminho para expandir sua arte e também para construir uma carreira que mistura técnica, criatividade e empreendedorismo. Hoje, suas criações ultrapassam o universo drag e ganham visibilidade em produções de clipes musicais, desfiles de moda e editoriais, mostrando como esse elemento artístico dialoga com diferentes linguagens e públicos.


“Eu comecei a fazer peruca bem pré-pandemia, em 2020, com dois anos de drag. Minha mãe é cabeleireira e tinha salão, então eu via como o cabelo era importante para as mulheres como fonte de renda, para autoestima, moda e até mesmo um demarcador cultural. Quando comecei a fazer drag, percebi que queria que o cabelo fosse uma fortaleza da minha drag, a Mira. Na pandemia, comecei a experimentar em casa, testando técnicas com uma amiga drag e consumindo muito conteúdo sobre perucas de diferentes nichos, como cosplay, teatro e cinema. Meu curso de designer gráfico também ajudou nesse processo.”

O universo das perucas ultrapassa a estética: ele se tornou um espaço de troca e colaboração entre artistas, fortalecendo não apenas a cena drag, mas toda a rede cultural LGBTQIAPN+ de Belo Horizonte. Para além do trabalho individual, o processo envolve parcerias criativas e compartilhamento de conhecimento, que sustentam uma verdadeira economia colaborativa, como é o caso da parceria entre Mira e a marca de roupas Pierro. 


“A Pierro me contratou para desfiles e ensaios de coleções e o uso de perucas proporciona mais possibilidades e versatilidade para o styling do projeto, podendo ser mais criativo nas produções. Em um desfile da Pierro, eu convidei a Aria para me ajudar nas produções, já que eram muitas perucas para um curto espaço de tempo, o que fortaleceu nossa colaboração. Vejo que é importante somar forças ao invés de ver o outro como concorrente, porque a demanda é grande e o mercado pequeno. Essa união e consciência do valor do trabalho ajuda a melhorar as condições para todos os profissionais envolvidos.”


A perucaria, embora esteja diretamente ligada ao universo artístico e ao palco, também carrega em si o potencial de se firmar como uma prática profissional mais ampla e estruturada. No entanto, o caminho para transformar esse ofício em um negócio sustentável envolve uma série de obstáculos, mas também abre portas para novas formas de atuação e crescimento.


“O maior desafio é conciliar duas fontes de renda porque, sendo microempreendedor individual, preciso de capital para manter o negócio. Outro desafio é o reconhecimento do trabalho como profissão, pois muitas pessoas não compreendem o valor financeiro e a complexidade do serviço, o que exige um grande papel educacional. Além disso, as oportunidades são difíceis de acessar, ficam muito concentradas em núcleos tradicionais, e não há canais claros para oferecer serviços para peças e shows maiores na cidade. A sazonalidade também é um problema, pois as demandas acontecem em períodos e temporadas. Por fim, ainda existe uma carência de conteúdo organizado e atualizado sobre perucaria para profissionais no Brasil, o que dificulta o aprimoramento técnico.


Quanto às oportunidades, elas precisam ser cavadas e construídas, especialmente com o uso de produção de conteúdo digital para divulgar o trabalho. A exposição artística funciona como vitrine e traz indicações que geram novos trabalhos.”


A moda como ferramenta de colaboração e impacto cultural


No cenário drag, em que cada detalhe do visual comunica uma narrativa, Aria Dreamz encontrou no design de looks um território para afirmar sua singularidade. Entre construções de figurinos para si mesma e também para outras artistas, essa habilidade de transformar ideias em roupas fez do design uma das marcas mais fortes de sua trajetória. Essa jornada combina experimentação, referências drag e aprendizado técnico, que Aria trouxe de suas experiências pessoais para o campo profissional. 


“O trabalho consciente com design de moda, veio muito depois na minha vida do que a arte drag. Eu comecei a assistir Drag Race com uns 13, 14 anos e participava de competições de desenho de RPG no Facebook. A Aria nasceu nesse contexto, desenhando roupas inspiradas em drag queens. Mais tarde, quando tive que encarar a escolha de uma graduação, optei por design de moda, porque já era algo que fazia desde criança, mas de forma muito lúdica. Hoje, nos meus trabalhos de faculdade, levo esse background de figurino e estética drag para o universo da moda, que às vezes é tratado como artigo de luxo, experimental ou teatral, mas que sempre tem a Aria e a cena drag por trás.”


Aria Dreamz por Jonas Dias
Aria Dreamz por Jonas Dias

Essa prática não se restringe à própria performance: criar looks para outras drags também se tornou uma oportunidade de colaboração e troca, fortalecendo a cena local e ampliando o impacto do seu trabalho. 


“Eu acho que o design de looks cria, sim, oportunidades profissionais e fortalece redes de colaboração. No meu caso, não comecei oferecendo isso como um serviço estruturado, mas como uma prática caseira, experimental. Mesmo assim, acabei sendo inserida em processos de criação coletiva. Gosto de pensar como uma troca de figurinhas: com a Mira, que faz perucas, ou com designers como a Voga e a Polaris, a gente compartilha técnicas, referências e se ajuda mutuamente. Isso eleva o nível de todo mundo.”

Porém, transformar essa prática em profissão apresenta desafios claros. A cena drag em Belo Horizonte ainda é pequena e fragmentada, exigindo esforço e preparo para que o trabalho transcenda o hobby e ganhe visibilidade.


“O maior desafio é que não vejo ainda um mercado grande em Belo Horizonte. Em outros lugares, como Rio e São Paulo, artistas conseguem exportar sua arte. Aqui, o caminho é mais lento. Mas fico muito feliz com as oportunidades que já tive, como assinar praticamente uma coleção para a segunda temporada de Drag Race Brasil com a Mellody Queen e de criar o look da Igrejinha da Pampulha para a Aquarela na 1ª temporada de Drag Race Brasil. Isso me mostra que, mesmo sem estabilidade financeira plena, estou adquirindo bagagem e preparo. A maior oportunidade é estar pronta para quando o momento chegar, com os meios técnicos e teóricos para abraçar algo maior.”

Mellody Queen por DAVLO
Mellody Queen por DAVLO
Aquarela por Marcelo Batista
Aquarela por Marcelo Batista

Quando os cafés da manhã e bingos viram palco da arte drag 


No O Quinteiro, a presença das drags começou como uma experiência pontual, mas rapidamente se revelou transformadora. Convidar as artistas para além dos tradicionais palcos de boate abriu espaço para que o público visse outras facetas da arte drag e compreendesse seu potencial como entretenimento e expressão cultural.


“A primeira oportunidade surgiu quando convidamos Charlotte para comandar um bingo durante uma edição do Mariconight, nosso evento temático que foi de festa junina. O resultado foi incrível, a presença dela elevou o nível do projeto e nos mostrou que a drag pode ocupar outros espaços além das boates, para além dos tradicionais lipsyncs ou do papel de hostess. Foi um divisor de águas, porque ampliou nossa percepção sobre o potencial artístico das drags e abriu caminho para que o público também pudesse conhecer facetas diferentes desse universo em contextos mais diversos e acolhedores.”

O impacto dessa presença vai além da performance: ela transforma a experiência do público, criando conexões diretas e únicas.


“A drag traz um tipo de entretenimento que foge do óbvio. É uma arte viva, interativa, que cria conexões diretas com o público de uma forma diferente de um show musical tradicional. Além disso, como nosso público não é exclusivamente LGBTQIA+, a presença delas possibilita uma inserção natural da cultura queer, muitas vezes para pessoas que dificilmente teriam contato com esse tipo de expressão artística em outros espaços. É muito simbólico perceber famílias inteiras, inclusive com crianças, vindo ao bar especialmente para assistir às performances. Isso reforça o poder que a arte drag tem de quebrar barreiras, encantar e criar pontes entre diferentes públicos.”

Além de enriquecer a programação, a presença das drags também fortalece a cena cultural local, gerando oportunidades de reconhecimento e colaboração entre artistas.


“Belo Horizonte já se consolidou como uma potência nacional na cena drag. Temos recebido cada vez mais artistas de fora e, frequentemente, drags que estão em destaque no cenário nacional reconhecem e celebram o talento das nossas artistas locais. Projetar esses nomes para todo o Brasil fortalece a cena de BH, dá visibilidade e aumenta as oportunidades de reconhecimento, valorização e remuneração, o que abre caminhos reais para que mais drags possam viver da arte. Esse fortalecimento só é possível também graças a parcerias como a que temos com a Wig Events, que vem fazendo um trabalho consistente e fundamental nos últimos anos para ampliar o alcance da cena.”

O Quinteiro por Victor Piroli
O Quinteiro por Victor Piroli

Entre moda e performance: a potência drag na Pierro


Na trajetória da marca Pierro, a presença drag não é um detalhe, mas parte essencial da construção estética e narrativa. Para Pietro, fundador e diretor criativo da marca, a escolha de trabalhar com drag queens está diretamente ligada ao nível de excelência que elas representam.

“Drag queens são grandes artistas, com grandes técnicas. Elas são especialistas no que fazem. E eu quero trabalhar apenas com as melhores.”

Essa busca pela maestria se reflete especialmente nos cabelos criados para os editoriais e desfiles da marca. Pietro destaca a parceria com Mira MiuMiu, que transforma perucas em verdadeiros instrumentos de moda.


 “Quando chamo a Mira para os projetos, sei que ela tem a capacidade de resolver qualquer cabelo que eu jogar na mão dela — desde penteados simples até os mais megalomaníacos. Isso me permite criar narrativas em que o cabelo também é um item de moda, uma linguagem que chama atenção e retém o olhar do público.”

Mas o impacto da presença drag vai além do styling. Pietro relembra que, desde antes da criação da marca, as drags já faziam parte do seu universo criativo, fortalecendo redes que envolvem maquiagem, fotografia, figurino e performance.


 “Sempre trabalhei com drags no backstage, em diferentes criações artísticas. Desde minha era fotógrafo até hoje, com a Pierro. Inclusive, as duas primeiras estampas da história da marca nasceram de trabalhos com drags — uma delas como maquiadora e modelo, e a outra a partir de uma maquiagem criada por uma drag queen.”

Pierro por @ayyyrosa.jpg
Pierro por @ayyyrosa.jpg

Assim, a Pierro reafirma como a arte drag ultrapassa o palco e se consolida como potência criativa, expandindo fronteiras da moda e abrindo caminhos para novas conexões entre diferentes linguagens artísticas.


Voga e o poder do upcycling: da escassez à afirmação criativa


Para Voga, o upcycling não surgiu apenas como técnica, mas como uma necessidade que se transformou em linguagem artística. Desde criança, já exercitava a criatividade ao customizar roupas para bonecos, reaproveitando retalhos descartados pela família. Essa relação com a escassez foi moldando sua visão de que dar novo ciclo aos materiais era também dar novas possibilidades à imaginação.


“Quando comecei na arte drag, não tinha muitos recursos. Então, fazia roupas com materiais não convencionais: banners, ecobags, emborrachado, retalhos de couro. Era um reaproveitamento real. A escassez provocou minha criatividade, e foi assim que o upcycling entrou de vez no meu trabalho.”

Com o tempo, essa prática deixou de ser apenas solução e passou a ser assinatura. O upcycling se tornou ferramenta de visibilidade, conectando Voga a uma rede de artistas, produtores, DJs e performers.


“Hoje me vejo vestindo gente do teatro, da dança, das artes urbanas. Tudo começou porque eu acreditava nas minhas criações e vestia primeiro em mim. As pessoas viam, queriam usar também, e o burburinho ia crescendo. Isso gerou colaborações incríveis e até desfiles que nunca imaginei fazer.”

Para atuar com upcycling, Voga acredita que é preciso mais do que técnica: é necessário sensibilidade estética, persistência e constante atualização.


“A primeira coisa é bom senso e bom gosto. Você pode não saber costurar, mas precisa entender acabamento, conceito e intenção. Existe uma linha tênue entre conceito e desleixo. Persistência também é fundamental, porque criar exige tentar, refazer, testar. E claro, buscar conhecimento, seja em cursos, seja pesquisando materiais, técnicas e tendências, ou até olhando para o passado para reinventar o presente.”

Voga por Victor Piroli
Voga por Victor Piroli

Transformar o upcycling em prática profissional, além do palco, também traz seus desafios. O maior deles, segundo Voga, é encontrar sua assinatura.


“O que vai diferenciar o meu trabalho? Como faço para que as pessoas me enxerguem como profissional? Esse foi meu primeiro desafio: me situar, entender quem sou e para onde quero ir. Depois disso, vem a oportunidade: estar na rua, nos eventos, ocupando espaços. A cidade precisa te ver, e você precisa se deixar ver. Muitas das minhas conexões e trabalhos surgiram nesses encontros.”

Assim, o trabalho de Voga com o upcycling ultrapassa a estética. Ele é, ao mesmo tempo, resistência, identidade e criação de novos futuros possíveis, dentro e fora da arte drag.


A arte drag em Belo Horizonte já não pode mais ser vista apenas como performance nos palcos. Ela se manifesta em perucas, figurinos, maquiagens e eventos que movimentam a economia criativa e fortalecem redes culturais. O que antes era restrito ao entretenimento da noite hoje se consolida como um ecossistema capaz de gerar renda, visibilidade e reconhecimento para artistas que se reinventam em múltiplos ofícios.


Ainda assim, o caminho para profissionalizar essas práticas continua desafiador. A ausência de apoio institucional, a sazonalidade das demandas e a dificuldade de reconhecimento do valor financeiro da arte fazem com que muitas drags precisem equilibrar paixão e sobrevivência. É nesse espaço de resistência que surgem colaborações, trocas de saberes e novas formas de empreender, mostrando que a força da cena está na coletividade.


Mais do que espetáculo, a arte drag é cultura viva, capaz de questionar, transformar e inspirar: dentro e fora dos palcos.


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