A Cultura do beijo
- Revista Curió
- 17 de jun.
- 4 min de leitura
Quem foi que teve a brilhante ideia de encostar uma boca na outra?
Por: Thiago Daniel
Última atualização: 17/06

Pense em um bebê. Dentro dele estão todas as possibilidades de existência da terra. Uma grande arquiteta, um renomado historiador, um ceramista habilidoso, um rato de biblioteca, uma fisiculturista famosa e até mesmo um designer gráfico. Todo o potencial de se tornar algo brilhante cabe dentro de um recém nascido. O interessante de ser discutido aqui é que, de todas essas possibilidades de existência, só algumas sobrevivem durante o crescimento. Nossa cultura funciona como uma peneira, selecionando o que e como esse bebê pode exercer seu vir a ser. Não é que não podemos ser o que queremos. Não é sobre tirar a agência dos humanos como sujeitos que tomam decisões sobre si. É sobre entender que, sobre nós, paira uma grande nuvem invisível que chove através do comportamento dos outros e controla, em níveis do inconsciente, nosso jeito de pensar, de andar, de se vestir, de se comunicar e, principalmente, de beijar.
Ao pensar sobre a origem do beijo, conclusões de algumas vertentes da Historiografia e da Antropologia são bem interessantes: alguns acreditam que seja um comportamento instintivo, citando práticas semelhantes em outros primatas, como os bonobos, que se beijam para restabelecer a paz após conflitos. Outra corrente defende que o beijo é um comportamento aprendido, que pode ter evoluído de práticas como a amamentação ou a pré-mastigação de alimentos para bebês nas primeiras culturas humanas. Quando o assunto é a origem das coisas, o tempo é nosso verdadeiro inimigo. Pessoas morrem, materiais estragam e o trabalho dos historiadores e dos antropólogos fica bem mais complicado. Sendo instintivo ou culturalmente aprendido, o beijo está aí há pelo menos 12 mil anos, segundo arqueólogos e pesquisadores que apresentaram ao mundo a pintura rupestre que retrata a primeira espécie de beijo a ser registrada no planeta. Ela está localizada no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e rende um bom caldo para a nossa discussão.
O que não falta, na cultura ocidental, é a representação do ato de beijar — beijo apaixonado, beijo técnico, beijo com e sem experiência, beijo molhado, beijo com e sem língua e beijo de longe. Por mais que os na boca sejam os mais marcantes, outros tipos também importam muito: um beijo na testa, que fez Gretchen ficar, não apaixonada, mas envolvida. O beijo na bochecha, que gerava um escarcéu no prézinho. O beijo de Esquimó (Kunik), que foi inclusive popularizado de forma equivocada, já que o Kunik dos povos Inuit não consiste em esfregar os narizes, mas sim pressionar o nariz e o lábio superior contra a bochecha ou a testa de alguém e inspirar, sentindo o cheiro da pessoa amada. É especialmente útil em climas no qual o beijo nos lábios poderia fazer com que a saliva congelasse e colasse as bocas – o que, apesar de ser romântico, é super dolorido e desconfortável.
Voltando ao beijo na boca, acredite ou não: há quem goste de beijo sem língua. Tem também quem prefere ficar só selinho. E aqueles que mordem o lábio do companheiro(a) mais do que deveriam? Ainda tem os que dão uma lambida antes de ir com tudo… Por qual razão isso acontece? É pessoal? Geracional? Com quem a gente aprende que é assim que se beija? É fato que cada pessoa tem um jeito específico de beijar, mas, para entender de onde isso vem, vamos pensar no antes: o terror do primeiro beijo. Quantos tutoriais ensinando a beijar existem no Youtube? E quantos tweets sobre o assunto? Ao pensar no modo como a cultura se propaga em termos de massa, chegamos a uma conclusão interessante: beijar envolve muito mais que um instinto. Na cultura em que vivemos é preciso saber beijar, mesmo sem nunca ter vivido isso. Tem que tomar cuidado para não bater os dentes, tem que prestar atenção para ver se não está colocando a língua demais (ou de menos). Precisa morder com cuidado. Precisa sair um pouco da boca e percorrer o pescoço e outras partes do corpo. Precisa se encaixar com o da outra pessoa e precisa ser mágico na primeira vez.
É nesse “ser mágico” que a peneira cultural mostra sua força máxima. Ela transforma um ato que poderia ser puro instinto em uma performance social cheia de regras, expectativas e significados. O beijo deixa de ser apenas o encontro de duas bocas (ou mais) e passa a ser um roteiro aprendido em filmes, músicas e tutoriais da internet. Aquela nuvem invisível que paira sobre nós não apenas sugere coisas e comportamentos, ela ensina e cobra a lição, quando por exemplo batemos o dente no dente de alguém e saímos como quem beija mal. No fim, a brilhante ideia de encostar uma boca na outra talvez não tenha sido de uma pessoa só, mas de toda uma cultura que, ao longo de milênios, decidiu que esse gesto valia a pena – e que ele tinha que ser inesquecível.
Apesar de toda essa pressão, quando você passa por essa turbulência do primeiro beijo (que infelizmente se repete em cada um dos novos relacionamentos que você entra), é possível romper, com a ajuda de seus parceiros, essa linha tênue entre nossas vontades da vontade da cultura. Ser capaz de romper com a cultura do beijo é importante, porque, se em todos os filmes e séries beijar bem carrega variáveis que estão para além do nosso controle, talvez o beijo da vida real seja uma das poucas frestas por onde a nossa versão mais espontânea consegue, vez ou outra, escapar.
Texto lindo e interessantíssimo! Parabens!