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A linguagem cromática: como as cores moldam significados no cinema?

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 24 de jul.
  • 7 min de leitura

Indispensável para qualquer filme, a coloração age como ferramenta para transmissão de emoções através das telas


Por: João Henrique do Nascimento

Última atualização: 24/07/2025



Homem com H/Divulgação
Homem com H/Divulgação

Um show de luzes e cores tomam o palco juntamente com Ney Matogrosso em uma das produções nacionais mais marcantes de 2025 – Homem com H, dirigido por Esmir Filho. O artista, interpretado por Jesuíta Barbosa, traz consigo a presença de tons vibrantes de vermelho, amarelo e roxo. A mistura dessas cores é capaz de transmitir, por meio do longa, a noção de intensidade e extroversão na figura misteriosa e imprevisível de Ney.


Outro exemplo de utilização das cores para transmissão de significados é Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles. Além da trama, é possível perceber que, no começo do filme, há predominância de cores claras – como o amarelo –, que incidem diretamente sobre os personagens quando estão na praia, por exemplo. O tempo ensolarado passa a sensação de otimismo para a cena da família Paiva reunida na praia do Leblon, no Rio de Janeiro.


Ainda Estou Aqui/Divulgação
Ainda Estou Aqui/Divulgação

No entanto, o desaparecimento de Rubens Paiva, marido de Eunice, é um ponto de virada em que o equilíbrio na família se dissolve. Os dias ensolarados são substituídos em maioria por cenas opacas, destacadas pela presença da cor preta e de tons escuros de azul. O jogo de luzes é outro elemento que contribui para a atmosfera fria e misteriosa que a personagem de Fernanda Torres se encontra.


Ainda Estou Aqui/Divulgação
Ainda Estou Aqui/Divulgação

Já ficou claro que as cores, junto com o controle de iluminação das cenas, são utilizadas para a transmissão de significados no audiovisual por meio de subtextos não verbais. Para entender melhor como isso é feito e pensado, vale começar explorando desde o básico: afinal, o que são as cores?


Iluminando os caminhos


Considerando que as cores têm relação direta com a incidência de luz, sob a percepção do campo científico, elas não existem sem a iluminação. A coloração é obtida como resultado da captação de determinados comprimentos de onda pela retina quando a luz reflete nos objetos ao redor. As cores também são divididas em instâncias. As primárias — o vermelho, o azul e o amarelo — não podem ser produzidas através da mistura de nenhuma outra cor. Já as secundárias podem ser produzidas pela mistura de outras duas cores primárias. Por fim, as terciárias surgem a partir da combinação de uma primária com outra secundária.


Também é possível classificar as cores entre quentes e frias, títulos baseados em associações psicológicas e culturais, como associar o amarelo ao sol ou o azul ao gelo. O espectro das quentes compreende o vermelho, o laranja e o amarelo, bem como os tons de rosa. Estas são reconhecidas por carregarem significados diversos, como intensidade, amor, paixão, raiva, riqueza, leveza, otimismo, alegria. No que convém às cores frias, — como verde, azul e roxo — são capazes de remeter, na maioria das vezes, a sentimentos de distância, tranquilidade, equilíbrio, vazio. Entre essas várias definições, não é possível associar apenas um significado para determinado uso cromático, tornando-se indispensável estar atento ao contexto em que as cores estão inseridas.


O círculo cromático é uma ferramenta muito utilizada em campos artísticos que se utilizam da psicologia das cores nas suas produções. O instrumento facilita a identificação de quais cores possuem mais contrastes que outras, assim como a percepção de tons vizinhos que permitem a criação de nuances de significado.


O Círculo Cromático, uma representação visual das cores percebidas pelo olho humano – Nosso Cabide/Repdoução
O Círculo Cromático, uma representação visual das cores percebidas pelo olho humano – Nosso Cabide/Repdoução

Uma cor não tem apenas um significado – cada uma delas atua de modo diferente dependendo do contexto. Utilizando o vermelho como exemplo, ele pode indicar tanto momentos de paixão como expressões de raiva. Já o amarelo consegue apontar tanto para uma situação de alegria ou riqueza, quanto para uma relação de ciúmes. Isso acontece porque nenhuma cor funciona sozinha em função dos acordes cromáticos.


Acordes cromáticos são combinações de cores formadas pela paleta mais frequentemente associada a um certo efeito que busca ser causado no espectador. Isso indica que não apenas diferentes conjuntos podem expressar aspectos semelhantes, mas como também as mesmas cores estariam conectadas a um efeito similar a outras. Então, enquanto o ouro, prata, vermelho, violeta, preto podem representar o luxo quando juntas, o ouro, violeta, amarelo e laranja podem transmitir a ideia de ostentação.


Segundo a estudiosa de audiovisual Kristin Thompson, o uso de cores no campo cinematográfico é uma saída para o consumo alucinado que é visto quando nos deparamos com o modo de contação de histórias americano, cuja fórmula da “Jornada do Herói” é uma das mais disseminadas mundialmente. A utilização de coloração no cinema, assim como o jogo de luzes, os enquadramentos, os desfoques e o restante de elementos além-trama formam o complemento necessário das produções. É neste “a mais” que está a nuance de significados que conduzem as histórias.


A (nem sempre) colorida trajetória do cinema


O cinematógrafo foi o instrumento manual criado em 1895 pelos irmãos franceses Lumière que combinava imagens em sequência para simular movimento que eram projetadas para um público. A Chegada do Trem na Estação (1895), considerado como o primeiro filme produzido, é uma das realizações dos irmãos que, inicialmente, gravavam paisagens sem a presença de uma história. Mais tarde, George Méliès recorreu à introdução de narrativas literárias no campo audiovisual com o intuito de prender a atenção dos espectadores, como o título Viagem à Lua (1902).


No entanto, ainda não existia alguma tecnologia capaz de capturar e reproduzir cores nas obras. Foi quando o tingimento, método acessível que consistia em mergulhar a película do filme em um banho de corante, foi utilizado pioneiramente por Méliès, Pathé e Gaumont no início do século XX. Este era capaz de fazer com que a película dos filmes fosse tingida de cores uniformes que tinham funções específicas: azul para cenas noturnas, verde para natureza e paisagens e o vermelho para momentos passionais ou incêndios são alguns exemplos. Esta é uma demonstração de como, desde o princípio, cada tonalidade já possuía uma série de significados sendo atribuídos a elas.


O advento da empresa Technicolor, em 1917, revolucionou o sistema de cores na indústria audiovisual a partir da invenção de películas que possuíam as três cores primárias, o que conferia maior realismo às imagens. O longa-metragem Vaidade e Beleza (1935), dirigido por Rouben Mamoulian, foi o primeiro por parte da companhia a ser apresentado com a nova tecnologia. No entanto, é interessante ressaltar que alguns cineastas e críticos temiam que a cor pudesse ser uma distração da beleza e da dramaticidade do cinema, que deveria estar na narrativa.


Vaidade e Beleza (1935) - DVD, Sofá e Pipoca/Divulgação
Vaidade e Beleza (1935) - DVD, Sofá e Pipoca/Divulgação

No meio aos debates sobre a relevância – e até necessidade – do uso da coloração nos filmes, a equipe da Technicolor estipulava regras para a composição cromática dos filmes. Estas regulamentações foram palco para embates sobre a restrição do uso livre das cores nas produções por parte de outros cineastas. Uma das exigências era que os personagens principais deveriam ter cores vibrantes no figurino, o que os destacariam dos secundários, com cores mais páldas. Um exemplo disto seria a protagonista Dorothy, de O Mágico de Oz (1939), em que a coloração azul de seu traje contrasta com a neutralidade dos outros personagens.


O Mágico de Oz/Divulgação
O Mágico de Oz/Divulgação

Por volta dos anos 50, a Eastman Kodak desbancou a Technicolor ao trazer outra tecnologia mais barata e menos complicada ao mercado cinematográfico: o Eastmancolor. A técnica consistia em um único rolo de filme que continha as três emulsões sensíveis necessárias para a formação das imagens coloridas nos filmes. A partir deste mecanismo, as obras poderiam ser gravadas em uma câmera em preto e branco e, depois, processadas em instalações convencionais.


Em essência, o Technicolor oferecia um processo de cor visualmente superior (em termos de permanência), que definiu a aparência do cinema colorido inicial, mas extremamente trabalhoso. Por sua vez, o Eastmancolor, democratizou a produção de filmes coloridos, tornando-a mais prática e acessível, mesmo que inicialmente apresentasse comprometimentos em termos de estabilidade da cor ao longo do tempo. A indústria acabou migrando para o método da Kodak devido à sua relação custo-benefício e facilidade de uso, enquanto o Technicolor se transformou, principalmente, em um serviço de impressão para outros negativos coloridos.


No filme indiano Encontro com o Destino (1965), é possível ver a diferença entre as técnicas do Eastmancolor (à esquerda) e Technicolor (à direita) – Mr. & Mrs. 55/Divulgação
No filme indiano Encontro com o Destino (1965), é possível ver a diferença entre as técnicas do Eastmancolor (à esquerda) e Technicolor (à direita) – Mr. & Mrs. 55/Divulgação

Com o tempo, a utilização das cores como complementos essenciais à narrativa fílmica foi sendo encorajada nos festivais de cinema, como em Cannes. Isso contrariou o cenário inicial de que serviam apenas de suporte para a demonstração artística das fotografias em movimento.


As cores no cinema contemporâneo


Hoje, o uso cromático nas produções cinematográficas é indispensável. Outro produto em que fica evidente a transmissão de significados por meio destes “excessos” em um filme é Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), de Barry Jenkins. O longa-metragem aborda uma jornada pelo autoconhecimento e explora o conceito de identidade na pele de um jovem negro de Miami.


Uma das cenas mais emblemáticas de Moonlight é o “batismo” de Little, como o protagonista é conhecido quando criança. Nela, o chefe do tráfico da região, Juan, pega o menino nos braços na praia, fazendo-o boiar e mergulhar lentamente nas ondas de um imenso oceano azul. As águas do litoral são dotadas de uma cor que pode representar tanto a imensidão quanto o perigo. Esse exercício de auto descoberta é um terreno, ao mesmo tempo, belo e sensível, já que na maioria das vezes nem conhecemos quem somos. Recentemente, a Curió já explorou o papel chave da coloração no longa de Jenkins.


Moonlight/Divulgação
Moonlight/Divulgação

Por mais que possa passar despercebida na maior parte das vezes, a escolha de coloração e iluminação das cenas é um dos aspectos mais importantes para que o filme consiga transmitir suas pretensões ao espectador. Ao mesmo tempo, se a ausência de cores também foi a única opção viável no cinema por muito tempo, hoje em dia também conquistou um lugar próprio na difusão de significadosEm exemplos recentes, como Oppenheimer (2023) e Pobres Criaturas (2023), a variação entre cenas em preto e branco com outras coloridas orientam o público a como perceber momentos distintos das obras de diferentes maneiras.


Como dito anteriormente, isso não significa que a utilização de determinada combinação de cores consiga transmitir apenas uma única interpretação das emoções evocadas na tela. No entanto, estar atento às potencialidades deste recurso é uma das maneiras mais interessantes de compreender os eventos narrados, enxergar subtextos e sentir junto aos personagens.




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