top of page

Quando o cinema se projeta

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 17 de jul.
  • 5 min de leitura

Em “A Invenção de Hugo Cabret”, Martin Scorsese executa, por meio do próprio filme, uma grande homenagem à sétima arte

Por: Ana Clara Moreira e Laura Torres

Última atualização: 15/07/2025


Hugo Cabret/Reprodução
Hugo Cabret/Reprodução

Se a metalinguagem é uma função que utiliza dos próprios códigos para descrevê-los e explicá-los, poucos exemplos desse artifício são tão consistentes quanto A Invenção de Hugo Cabret (2011). O filme dirigido por Martin Scorsese, que é inspirado no livro homônimo de Brian Selznick, figura entre uma das mais ricas homenagens à literatura e ao próprio cinema.


Com 11 indicações e cinco estatuetas conquistadas no Oscar em 2012, o filme traz diversas formas de metalinguagem: a principal delas – sobre a qual a Revista Curió se debruça – é a do fazer cinematográfico inserido no próprio filme. No entanto, referências à literatura dentro literatura, assim como aos livros na sétima arte, complementam as discussões da obra.


Hugo e o Cinema


Ambientada em Paris, na década de 1930, a história narra a saga de Hugo Cabret (Asa Butterfield), um menino órfão de 12 anos que vive sozinho dentro das paredes de uma estação de trem. Ali, abandonado pelo tio que o tutelava, passa a cuidar da sincronicidade dos relógios, função que garante seu anonimato e a permanência no local onde se abrigava.


Entre engrenagens e polias, Hugo se empenha em consertar um autômato – tipo de máquina que reproduz alguns movimentos humanos –, única herança do falecido pai. Para conseguir as peças que precisava e corrigir os problemas do pequeno homem mecânico, ele furtava alguns itens da loja de brinquedos da estação. Em uma dessas incursões, o órfão é flagrado pelo dono do espaço, um velho mágico chamado Georges (Ben Kingsley), que lhe toma um caderno de anotações e ameaça denunciá-lo ao inspetor do local.


Hugo Cabret/Divulgação
Hugo Cabret/Divulgação

Para não ser taxado de ladrão e para reaver o objeto apreendido, que continha todas as informações sobre o funcionamento da máquina, Hugo aceita uma proposta de Georges para trabalhar na loja dele. A partir do relacionamento estabelecido entre os dois, o espectador embarca no mistério sobre os motivos que teriam levado aquele senhor a ser tão amargo e misterioso, e, mais do que isso, a ter se interessado tanto pelas notas que havia no caderno do menino. Com o desenrolar da trama, revela-se não só que Georges é o cineasta Georges Méliès, mas que aquele autômato era uma de suas obras. 


Entre o desejo de concluir o trabalho do pai e a necessidade de cumprir o dever na loja de brinquedos, Hugo é um protagonista que retrata bem o estado do cinema naquela ocasião: jovem, órfão e sempre à espreita de tudo o que acontecia no mundo ao seu redor. O abandono do menino é um retrato real e cruel da forma como o cinema foi renegado no pós-guerra e durante a Grande Depressão.


De maneira mais literal, a metalinguagem se apresenta na reprodução e reconstituição de cenas dos primeiros filmes projetados em grandes telas, como A Chegada de um Trem na Estação (1896), dos irmãos Lumière. A famosa cena é apresentada ao espectador quando Hugo busca informações sobre a história do cinema, e, sob outra perspectiva, no sonho em que ele tenta resgatar a chave do autômato, caída nos trilhos da estação onde ele vivia.


Outro momento sutil, mas muito impactante, do cinema dentro do cinema, é a cena em que Georges inspeciona o caderno de anotações de Hugo e vê um stop motion do autômato, em nítida referência às imagens em movimento – um embrião da sétima arte. Para olhares mais desatentos, as figuras desenhadas em sequência podem não ter tanto significado, mas dizem respeito à descoberta que, mesmo anos depois, se tornou objeto de estudo sobre a importância daquela técnica como recurso para guardar, ao longo do tempo e com certa fidedignidade, informações importantes para a sociedade.


A magia de Georges Méliès


O fato do protagonista cuidar dos relógios é uma das mais interessantes metáforas para o papel desempenhado por ele na narrativa: o de alguém que mantém o tempo em movimento. Esse controle simbólico permite que Hugo sirva como uma conexão entre diferentes épocas, principalmente no que diz respeito à história do cinema – personificada em Georges Méliès – e representa o esforço de resgatar aquilo que foi “deixado para trás”.


O artista francês se destaca no cinema tanto pela imensa criatividade nas montagens quanto pela capacidade ímpar de produzir histórias capazes de provocar a imaginação do público. Pioneiro na utilização de efeitos especiais, que eram executados por truques e preenchiam a tela de magia produzida em estúdio, ele começou apenas filmando as ruas de Paris, mas logo inovou através de técnicas típicas de outras artes e ofícios com os quais havia trabalhado.


Georges Méliès - MUBI/Divulgação
Georges Méliès - MUBI/Divulgação

Mágico e ilusionista, Méliès se encantou pelo cinematógrafo dos Lumière e dedicou parte da vida a unir os espetáculos que já fazia nos palcos àquele fantástico equipamento de projeção luminosa. Justamente neste ponto é que a obra dele ganha relevo: em vez de retratar situações ordinárias, como se fazia até então, o artista extrapolou as convenções e produziu centenas de películas que tinham o objetivo de entreter e fascinar.


Em A Invenção de Hugo Cabret há várias menções aos filmes de Méliès, como Viagem à Lua, de 1902 – especialmente com a icônica cena da nave pousando no olho da lua, desenhada pelo autômato. Outros trabalhos dele que também aparecem no filme são A Crisálida e a Borboleta de Ouro (1901), O Melómano (1903), O Reino das Fadas (1903) e 20.000 Léguas Submarinas (1907).


Sob o olhar do mestre Scorsese


É particularmente significativo que essa homenagem venha de Martin Scorsese, diretor consagrado por filmes icônicos que, na maioria dos casos, são voltados ao público adulto. Em A Invenção de Hugo Cabret, ele inclui o juvenil sem perder as sutilezas que marcam sua obra. O longa se torna, assim, uma ponte entre diferentes gerações: apresenta a história do cinema para novos espectadores, ao mesmo tempo em que emociona os mais velhos com sua abordagem histórica.


Martin Scorsese - Shot on What/Divlugação
Martin Scorsese - Shot on What/Divlugação

Dessa forma, o diretor reafirma o poder do cinema como linguagem capaz de fabular, de criar outros mundos e, sobretudo, de preservar a memória de seus próprios criadores. Ao contar a história de Hugo, de Méliès e, consequentemente, do próprio cinema, a metalinguagem se apresenta não somente como recurso estilístico, mas como um entrelaçamento das dinâmicas temporais da arte.


Mais do que um filme sobre cinema, essa carta de amor aos seus precursores convida o público a redescobrir a imagem em movimento. Assim como o protagonista faz com o autômato e com Méliès, ela restaura histórias que só precisam de alguém disposto a escutá-las (ou melhor, assisti-las) para ganharem vida novamente.


Comments


bottom of page