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Atravessar o deserto

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • há 6 dias
  • 4 min de leitura

Quando a crise climática caminha próxima à crise cultural,  a imaginação é ferramenta de enfrentamento ao colapso


Por: Laura Portugal

Última Atualização: 11/11/2025


Denilson Baniwa -  “natureza morta”
Denilson Baniwa - “natureza morta”

Tem se tornado impossível, ao longo das últimas décadas, ignorar o modo como a crise climática afeta - direta e materialmente - o setor cultural. Os exemplos se acumulam, entre festivais interrompidos por enchentes, patrimônios históricos ameaçados pela seca, produções inviabilizadas pelo alto custo energético e dificuldades de circulação em regiões atingidas por desastres ambientais. Em 2024, o Museu Nacional da República precisou fechar temporariamente suas portas em Brasília após falhas no sistema de refrigeração agravadas pelas ondas de calor recorde. No Rio Grande do Sul, artistas, produtores e bibliotecários viram suas sedes, estúdios e arquivos destruídos pelas cheias - os mesmos espaços que, dias depois, serviram de abrigo para pessoas e animais desalojados. Uma busca rápida por “show interrompido por calor” devolve, nos primeiros resultados, relatos de cinco artistas diferentes em menos de um ano. Se antes era possível prever chuvas e temperaturas no planejamento de eventos culturais, hoje qualquer sensação de estabilidade parece cada vez mais improvável.


O colapso climático já consolidou um cenário em que suas consequências integram o cotidiano da cultura com casos que, se já foram exceções de alerta, agora se repetem em intervalos cada vez menores. Em termos de um setor historicamente fragilizado por cortes de orçamento e falta de infraestrutura, os impactos ambientais acrescentam uma nova camada de instabilidade que atravessa todos os níveis de produção - sobretudo aqueles que sempre existiram em contextos de vulnerabilidade. Mas, para além de ser diretamente atingida, a cultura também ocupa um outro lugar na maneira como a crise climática se manifesta. Enquanto, de um lado, se questiona o sentido de falar em cultura diante de um mundo que arde, vivemos, ao mesmo tempo, o resultado de não se ter falado o suficiente. Se a crise climática é uma crise de sistemas produtivos e políticos, talvez seja também, e de forma cada vez mais gritante, uma crise de imaginação.


Culturas de terra


“Se estamos resilientes, é pela pujança de nossa cultura”, afirma a ativista e pensadora Shirley Krenak. Diante da crise climática e da urgência com que cientistas e movimentos alertam para o pouco tempo que resta, é difícil não sentir que assistimos ao fim de um mundo. Talvez por isso estejamos voltando o olhar, cada vez mais, para os povos que já atravessaram, repetidas vezes, o fim dos seus. Os povos indígenas do Brasil sofreram, com a colonização e a continuidade da violência instaurada nos séculos seguintes, perdas materiais e imateriais incalculáveis ainda hoje - e não apenas pela ausência de registros, pela falta de proteção às terras ou pelo número de pessoas assassinadas e violentadas dentro das regras do próprio sistema, mas também pela impossibilidade de, com a nossa língua, nomear certas perdas. Como medir a extinção de um canto ancestral? Ou a contaminação de um rio sagrado?


Mas esses povos sobrevivem -  quinhentos anos depois do início de uma violência para a qual ainda não imaginamos nome - também pela força cultural: aquela que não separa natureza e humano e, por isso, sustenta um horizonte mais amplo, capaz de enxergar saídas maiores. Imaginar outros caminhos, replantar no chão queimado, reensinar a língua esquecida, reflorestar a terra devastada - é o que ecoa a voz de Ailton Krenak quando clama, em consonância com seu manifesto A vida não é útil (2020), que o que precisamos, em vez da fuga, é cravar os pés no mundo: “Toda vez que você encontrar um deserto você vai sair correndo? Quando aparecer um deserto, atravessa ele!“ 


Entre pessoas cada vez mais jovens, a ansiedade climática, ou ecoansiedade, tem se transformado rapidamente em uma espécie de desistência diante do futuro do planeta. A sensação de que pouco pode ser feito, ou de que qualquer esforço será insuficiente, parece incontornável nos discursos que preenchem as redes. Embora parte dessa percepção tenha causa clara no enorme poder concentrado em empresas, sistemas e políticas cada vez mais distantes, outra força exerce influência persistente. 


Em fala que circulou amplamente nas mídias, o neurocientista Sidarta Ribeiro — cujo trabalho se destaca justamente pela aproximação entre a ciência ocidental e os saberes tradicionais dos povos originários — observou que nunca, na história, a sociedade humana produziu gerações tão literais. A imaginação talvez nunca tenha sido um músculo tão mal treinado quanto neste tempo em que qualquer dúvida encontra resposta instantânea e o ócio é rapidamente preenchido por uma avalanche de conteúdos - em sua maioria criados para gerar uma espécie de entorpecimento mental.


Nunca sonhamos tão mal, nunca imaginamos tão pouco, e nosso mundo nunca precisou tanto ser radicalmente reinventado. É nesse ponto que a cultura pode atuar e, com algum otimismo, tem atuado há anos — mesmo que, por muito tempo, longe dos olhares que, no nosso sistema, determinam sua validade. Hoje, essas manifestações estão por todo canto: se podemos conhecer a obra de artistas como Jaider Esbell, se através de suas pinturas descobrimos a manifestação de outra cosmologia, é uma prova de que a cultura pode ser uma arma contra a destruição da Terra. Se o Brasil se torna, a cada ano, um dos maiores expoentes do cinema indígena, com mais de 20 etnias produzindo filmes radicalmente distintos entre si, é uma prova de que a cultura oferece caminhos muito mais amplos do que podemos imaginar para enfrentar a devastação do planeta.


Mas, neste momento de crise de imaginação, as possibilidades da cultura vão além  da mobilização de discursos que reinauguram esse mundo. É também uma forma de cultivar caminhos em que a imaginação seja, de novo, tratada como músculo e recurso de sobrevivência; de direcionar a atenção para artes que não oferecem todas as respostas, que existem mais no tempo da contemplação do que na frequência de estímulos; de preservar e conhecer as culturas de povos cujas cosmologias se pautam por outras formas de se relacionar com a inteireza da Terra. É pela cultura que surgem formas de insistirmos em imaginar outro mundo - e reinventar este. 


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