O EP de estreia da banda Delírio Cabana é mais um dos passos em movimento para a remodulação da identidade nortista.
- Revista Curió
- 5 de nov.
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Por: Antonio Rivers
Última Atualização: 05/11/2025

Com uma sonoridade que transpira sagacidade e modernidade, o trabalho consegue sintetizar muito do que a cultura amazônica contemporânea tem a oferecer, longe dos clichês exóticos que costumam defini-la.
O quarteto é formado por Nando Montenegro, cantor, compositor e multi-instrumentista amazonense, que também integra a banda Butac Banzeiro. Completam a formação Luli Braga, cantora , que também tem seus trabalhos solos como o álbum Sinuose, lançado em 2020, Gabriella Dias, também manauara e cantora, e Bruno Mattos, multi-instrumentista e arranjador. Juntos, eles constroem uma proposta que dialoga com a tradição sem se prender a ela.
Mas afinal, o que é a identidade nortista?
Essa pergunta me acompanha diariamente. A identidade cultural do Norte é frequentemente observada de maneira singular quando comparada a outras regiões do Brasil. Enquanto identidades como a baiana, a paulistana ou a gaúcha são compreendidas em seu dinamismo e em constantes processos de reconfiguração com o tempo, a identidade nortista ainda é comumente reduzida a um único aspecto: os “povos da floresta”. Não se trata de desconsiderar a profunda e legítima relação entre a cultura regional e o bioma amazônico, que de fato estrutura modos de vida e imaginários. A questão central é perceber que, enquanto outras regiões vivem intensas movimentações culturais – na música, no cinema, no teatro e em tantas outras expressões artísticas –, o Norte segue refém de um discurso que insiste em um misticismo simplista e unilateral.
Quantas vezes nos deparamos com agências de turismo do Amazonas, do Pará, ou de outros estados da região, utilizando slogans prontos como “Venha conhecer o coração da floresta”, “Passe um dia com os povos originários” ou “Nade com os botos cor-de-rosa, guardiões dos rios”? Essa narrativa não só reduz a complexidade da região, como também a apresenta como uma paisagem estática, desprovida de vida política, social e cultural densa. O Norte é reduzido a isso: uma paisagem para se observar o pôr do sol no meio do rio.
Essa visão, no entanto, está longe de corresponder à realidade. A identidade nortista, como qualquer outra, é complexa e plural, forjada por séculos de trocas entre indígenas, ribeirinhos, migrantes e populações urbanas, marcada por conflitos, resistências e uma rica presença de variáveis tipos de pessoas na região. Ela não brota das cascas das árvores, como natural e imutável, é construída nas ruas, nos mercados, nos bares e nas periferias das cidades.

As consequências dessa visão reducionista não são apenas simbólicas, elas se refletem em decisões políticas e econômicas que impactam profundamente a vida na região. Quando o Norte é visto apenas como um jardim exótico, que tem como finalidade ser explorada, ou ser digna de preservação por ser os “pulmões do mundo”, e não como um lugar de gente, fica mais fácil tomar decisões sobre a região sem a participação da voz de quem nela vive.
Recentemente, a exploração de petróleo na Foz do Amazonas foi aprovada pelo IBAMA, mesmo em um cenário de crise climática iminente e semanas antes da COP 30, evento que discutirá justamente ações para frear essa crise. Irônico, não? Essa liberação foi feita sem um debate sério com as comunidades indígenas e ribeirinhas localizadas próximas da região a ser explorada. O discurso é sempre o mesmo: "o dinheiro da extração vai ser revestido ao desenvolvimento da região". Não preciso dizer que isso, historicamente, não passa de um discurso vazio, certo?
Mas o que o EP de estreia de Delírio Cabana tem a ver com tudo isso?

Tudo.
A música, mesmo em tempos de crescente mercantilização, continua sendo um poderoso agente transmissor e conscientizador de cultura. Ouvir o Delírio Cabana foi, para mim, uma experiência revigorante justamente por encontrar ali uma reafirmação da identidade nortista que não recorre à exotização fácil. O EP mescla influências da MPB contemporânea com o carimbó, o xote e o bolero, todos reinterpretados a partir de uma sensibilidade amazônica. Esse movimento de reconstrução sonora não está sozinho; Gaby Amarantos é um nome fortíssimo que traz essa música amazônica sem essa exotização ridícula. Seu álbum recente, "Rock Doido", é um exemplo perfeito, pois mergulha fundo no contexto das festas de aparelhagem e celebra o próprio movimento do rock doido, um subgênero visceralmente nortista e próximo do tecnobrega.
Vale notar que o brega, gênero que origina parte dessas fusões, não nasceu em Belém, mas em Recife. Essa observação não busca criar uma disputa estéril sobre autoria, mas sim destacar que o Norte também está inserido em fluxos de troca cultural com outras regiões do país, desenvolvendo, a partir deles, linguagens próprias – caso do tecnobrega. Outros nomes, como D'água Negra, também constroem trabalhos profundamente ligados à região sem cair na armadilha do exótico.
No EP do Delírio Cabana, as sacadas são inteligentes e afiadas. O uso de gírias regionais, por exemplo, está tão bem encaixado que, mesmo podendo soar estranho a ouvidos de outras regiões, não soa forçado. Aos que não as compreendem, basta uma rápida pesquisa ou uma escuta atenta para se conectar com a mensagem. Os instrumentais são outro destaque: a fusão de arranjos harmônicos refinados com elementos eletrônicos é executada com precisão, enquanto as vozes emanam uma sedução peculiar, quase um convite para se perder nessa experiência sensorial do disco.
A faixa “Guaraná”, composta pelos quatro integrantes, é um exercício de entre o real e o fantástico. Nando Montenegro descreve a música como habitando “um tempo-espaço onde o real e o fantástico se misturam”. O arranjo evoca o mistério das noites à beira do rio, enquanto a letra pinta cenas de uma paixão que se assemelha a um feitiço. É um destaque imediato.
Já “Gengibirra” revisita o bolero-brega, trazendo-lhe um sopro de modernidade. Bruno Mattos explica que a canção fala de superação: “Ela traz essa coisa de ter o coração partido por alguém, passa pela raiva, mas termina numa reflexão sobre amor próprio.” A mensagem é clara: a felicidade também nasce da libertação de relações que nos oprimem.

De certa forma, a essência do trabalho de Delírio Cabana é a libertação. Libertação de uma narrativa que condiciona o valor da identidade nortista à sua capacidade de se performar como exótica, "selvagem" e legível para um olhar de fora. O EP surge, assim, como um agente transformador que opera no campo mais vital de todos: o da disputa pelo imaginário.
Trabalhos como este são, portanto, muito mais que um conjunto de canções, são atos de afirmação no grande palco da memória coletiva. Quando escolhem cantar sobre a superação no bolero-brega ou o feitiço de uma paixão urbana, esses artistas estão fazendo muito mais que compor; estão arquitetando um repertório de novas imagens e significados para a Amazônia.
Eles disputam, linha a linha e batida a batida, a hegemonia de uma memória congelada que nos reduz a adereços de uma paisagem, demonstram, na prática, que a identidade amazônica não é um artefato do passado, um fóssil cultural para ser inspecionado. Ela é um organismo vivo, complexo e em constante processo de reinvenção, que pulsa tanto no asfalto quanto na floresta, e a matéria-prima não é apenas o mito e a natureza, mas também o afeto urbano, a tecnologia e a resiliência do cotidiano.
Nesse processo, a música consolida-se como uma das trincheiras mais potentes para essa reeducação do olhar. Ela não pede licença para existir, ela irrompe nos algoritmos e nas playlists do país, forçando um reconhecimento há muito negado: o de que a Amazônia real é feita de gente, de política, de contradições e de uma cultura que é contemporânea. Enquanto a narrativa hegemônica insiste em nos confinar ao lugar de paisagem, a nova música nortista, da qual Delírio Cabana é um expoente luminoso, nos reinstaura como protagonistas de nossa própria narrativa. Este EP é um capítulo inicial dessa reinvenção, a torcida agora tem que ser, que a cada dia, mais artistas se tornem expoentes desse movimento, e tenham sua devida atenção.



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