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Quando o “faça você mesmo” vira revolução

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • há 6 dias
  • 5 min de leitura

De que forma a limitação de recursos impulsiona a criatividade e desafia a indústria musical?


Por: Tiago Araujo

Última atualização: 12/11/2025


Show ao vivo com Barulho, LSD e Sonic Youth no deserto
Foto por: Alan Peak

O estabelecimento da indústria fonográfica consolidou o que significa produzir, lançar e, até mesmo, comprar um disco. Nessa indústria, a relação entre  música e  criação se dá por meio do dinheiro — para comprar equipamento, para assinar um contrato e para ouvir o seu artista favorito Por muitas vezes, tem-se a impressão que a forma da música realiza-se apenas por essas vias, e isso não somente é falso, como também impreciso, e evidenciado pela “tradição” musical ocidental hegemônica (período medieval ao romântico), e toda forma de expressão musical que está e esteve presente no mundo. 


A diferença entre os clássicos e a produção popular da expressão musical não é somente técnica, mas de acesso: ao público e ao equipamento desde àquele momento. Até o final do século XIX, com a queda das músicas de concerto, o acesso era limitado apenas àqueles que pertenciam à classe artística, que era paga para existir — por meio, seja do mecenato às instituições de arte — e muito associada aos aristocratas e instituições religiosas. No que consta cultura musical popular, não havia distinção entre eles e outras formas de classe “trabalhadora”, visto que na verdade a criação artística era paralela ao seu “verdadeiro ofício”. 


A falta de acesso aos equipamentos cria, para quem ainda assim insiste em criar música por fora dos meios “formais” de financiamento, a necessidade de produzir sua própria técnica e equipamentos. É possível dizer, portanto, que a cultura DIY (Do It Yourself, ou “Faça você mesme”) é um exemplo desse movimento, embora seja mais antiga até mesmo que a gravação de discos e o estabelecimento de uma indústria musical consistente. 


O DIY, ao longo do século passado, se estabeleceu nas culturas de rua, desde o Jazz de Dixieland até o rock estadunidense tocado pelos junkies, e o indie rock dos anos 1980, como o do Sonic Youth. No Brasil, pode-se falar falar sobre o punk rock, sobre o modo de criação de equipamentos da banda Mutantes — que adaptavam as suas guitarras para captação interna da distorção, para gravar direto na mesa de som —, ou mesmo a adaptação de equipamentos gringos para criar o funk, em que os equipamentos de DJ eram “traduzidos” por meio de samples e baterias. Em todo caso, há movimentos que surgem da rua, e que nascem justamente da falta de se estabelecer dentro do mercado geral. 


O funk, por exemplo, nasceu das culturas de bailes e da manipulação de músicas inspiradas nas festas de rua, que vão desde às manifestações estadunidenses, à cultura deejay jamaicana. Mesmo no berço da indústria musical, os Estados Unidos, é possível notar a presença de movimentos de subcultura que surgem de forma paralela à distribuição e criação homogênea, como o rap do sul do país — que é muito famoso pelas técnicas de manipulação e criação musical em fitas cassete clandestinas.


Foto da “capa” de uma das fitas de um dos artistas mais populares dentro do rap de Memphis, o Juicy J. Foto está disponível no RateYourMusic do álbum “Vol. 9mm "It's On"”. Interessante para mostrar a cultura de venda e reprodução em cassetes, mesmo para artistas que posteriormente ficaram famosos:


Fita de música antiga


É importante dizer que, para essa cultura, o DIY é uma ferramenta política não apenas por insistir na arte, mas porque em torno disso se cria uma classe trabalhadora que vive de arte. Como não existe mais o mecenato, e a indústria em si está estabelecida para menos de 1% de toda produção artística criada — basta olhar quantas músicas saem diariamente e quantas estão sob o aparato do marketing, do financiamento, quase nenhuma. O simples tentar viver de música parece (e é!) mais um trabalho do que uma produção natural, interna, do “fazer artístico” (como se acreditava que o ofício era exercido pré-século XX). É um movimento abaixo da indústria cultural e por si só uma tentativa de resistência cultural ao mesmo tempo.


A questão torna-se, portanto, não apenas dizer que é possível fazer política com essa maneira de criação artística, mas que a escolha de produção e uso da técnica já é em si a forma-política da música. Evidentemente, isso nem sempre é uma escolha. A única rota para esses músicos insistentes, sem acesso aos aparatos industriais é andar na subcultura. Contudo, há uma diferença entre abraçar a subcultura e suas ruas áridas e viver por baixo emulando as assépticas calçadas da indústria, e isso é notável para qualquer um que realiza o exercício crítico da escuta para vários lançamentos musicais, mesmo os independentes. É no ato das decisões da criação musical que se evidencia.


Ao longo de todos os anos, após o estabelecimento da indústria musical, vemos a troca estética entre o que é subcultural e o que é a cultura em si. O ensaio “Gato Tosco Contra Tigres de Papel” de J-P Caron e Bruno Trchmnn, músicos e professores brasileiros, fala a respeito da criação da música enquanto forma artística hoje na subcultura, ou na cultura underground, como chamam no texto. Para eles, o próprio ato de criar sob as circunstâncias do underground é uma forma de rebelar-se, eles dizem que “a massa anônima do underground, não faz parte do sistema de arte enquanto uma força ativa, e sim como uma cultura orientada pela inovação formal e por relações orgânicas, que é constantemente apropriada por este sistema”. Isto é, a subcultura não pertence à cultura, mas é sempre dominada por ela. Não é de hoje que um artista milionário pode ostentar um álbum baseado em uma Electronic Dance Music (EDM) (Música Eletrônica para Dançar) criada por meio da técnica DIY, na periferia da música e das cidades. Crar música passa a ser um meio de ultrapassar barreiras, uma forma resistente de agir no presente, em si mesmo a própria criação de um ambiente heterotópico.



Baile funk, submundo 808
Baile funk, submundo 808. Fotógrafo Júlios Mariano / @juulios no instagram.

A capacidade de  distribuição  independente dessas músicas são hoje impulsionadas por  plataformas digitais, como Soundcloud, Youtube, Bandcamp, ou mesmo empresas maiores como Spotify. Em período de neoliberalismo, o debate principal se torna como operar sempre sob o domínio de empresas, mesmo as que são mais amigáveis para com os artistas. Evidentemente, existem ainda os impulsos de autopromoção por meio da distribuição gratuita. Em 2025, viu-se especialmente o músico Chuquimamani-Condori, que divulgou vários de seus DJ Sets via links no Instagram, de acesso livre. Mas isso é promoção, não é mercado. De igual modo, falar sobre o consumo de álbuns de forma clandestina — por meio da pirataria — é ainda mais fácil hoje com a internet, que as vendas clandestinas de fitas cassete, porém, se dá para dizer que isso ocupa qualquer espaço no momento atual vivido, é apenas a marginalidade.


No fim, o que é impressionante e importante acerca da criação e do uso da criatividade, da técnica e da exploração artística dentro de uma classe que hoje, majoritariamente não são apenas artistas — são também trabalhadores, de todas as profissões possíveis — é perceber que, ainda existem formas de resistência possíveis, e muitas vezes elas estão diante dos nossos olhos, ou na palma de nossas mãos. Fazer música hoje, dentro desses ambientes heterotópicos é ainda ter muito amor pela vida.


 
 
 

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