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CORTAVENTO: A inquietude eólica de Joca

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 3 de set.
  • 4 min de leitura

Por: Gabriel Vergueiro

Última Atualização: 03/09/2025


Divulgação: João Medeiros
Divulgação: João Medeiros

Há pouco mais de um mês, no dia 23 de Julho, o rapper niteroiense Joca lançou CORTAVENTO — assim mesmo: tudo junto, em caixa alta —, disco em que mergulha com muita maturidade em sua ancestralidade e no universo percussivo brasileiro, abrindo espaço para diálogos sobre autodescoberta, relacionamentos e pertencimento, além de um poderoso discurso sobre a vida. Seis anos separam o lançamento desse trabalho de sua tão comentada estreia. A Salvação é Pelo Risco, de 2019, projetou Joca na cena do rap nacional, o colocou em diversos palcos pelo Brasil e abriu portas que vão desde colaborações com nomes fortes da música atual, como Ana Frango Elétrico e Tuyo, à citação em disco do Don L. No primeiro registro de estúdio, Niterói era cenário para O Show do Joca, uma dramédia pessoal feita de paixões, fluxos e fragmentos. A cidade ainda é incorporada na poesia do rapper, que apresenta suas paisagens e sensações em uma espécie de celebração a um dos elementos fundamentais do disco novo: a rua.


Apesar de uma obra declaradamente para Iansã, não é à toa que Joca opta por iniciar o trabalho com a faixa EXUBERÂNCIA, pedindo caminhos abertos para Exú e formando passagem para a mensagem chegar. Exú reside na encruzilhada, mas não só. Ele mora, como diz um ótimo texto de O corpo encantado das ruas (2019) do historiador e professor Luiz Antônio Simas, “no som de um assovio ou nos desenhos de um surdo de terceira no meio da bateria de uma escola de samba”. Ou, então, no instrumental de CHINELIN, música escolhida como single para abrir os trabalhos do álbum. Se em toda rua tem uma sonoridade, Joca não hesita em fazer de seu som a cara da cidade sorriso, ao se portar como o ‘tal dono da city’ alcunhado em SÓ POR HOJE.


Em CHINELIN, entre nomes de bairros e parceiros que fizeram parte de sua trajetória na cidade, Joca exprime sua identidade artística enquanto reflete sobre sua história e processos de deslocamento, dando, já de cara, a tônica do disco: produção e, sobretudo, versos muito caprichados, mas sem excessos ou preciosismo. O foco no registro é a mensagem clara, as rimas e os sorrisos. Vemos, assim, o máximo sendo extraído do artista mineiro radicado em Niterói, também fruto de uma evidente maturidade lírica combinada à extensa pesquisa percussiva que tem realizado nos últimos anos — outro elemento crucial ao registro. 


A partir desse casamento, coexistem dois textos no disco: o dos versos e o texto pertencente ao que Luiz Antonio Simas chama de gramática dos tambores — uma gramática, não alheia, mas paralela à gramática das letras. Os tambores têm escrita e narrativa próprias, que por vezes auxiliam, e muito, no discurso da música. Em FILHO DO VENTO, por exemplo, vemos uma clara ode a Iansã (que permeia a obra num todo), tanto pelo título, quanto pelos versos, mas, sobretudo, pelo que se percute. A faixa inicia com um canto de Iansã, marcado pelo ilú, toque keto para a orixá, que logo é incorporado à música e ecoa até o final dela. Enquanto a letra fala de reorientação e raízes, ao fundo, o instrumental bate para Oyá, em um sentido particular, em uma linguagem que não interfere diretamente no que é dito, mas adiciona contundência e forma base para o texto falado se estabelecer. 


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Ao longo do disco —o que talvez seja um dos aspectos mais bonitos dele —, somos confrontados com a posição histórica dos tambores de dizerem no lugar da língua falada, daquilo que está para além do verbo, o subliminar no corpo de cada faixa. E é interessante que, aqui, quando se fala em tambor, não se refere apenas ao instrumento, caracterizado por corpo e pele. Mas, também, aos beats que o compõem como ideia. Em CORTAVENTO, Joca defende o atabaque, o reco-reco, o caxixi e a música eletrônica periférica como partes de uma só genealogia. A mistura da percussão orgânica com a eletrônica, a defesa disso como unidade é argumento diaspórico, é a reconstituição de uma linhagem percussiva.


O discurso, fundamentado nesses tambores, se faz completo pelas inúmeras participações presentes no disco — elemento que fecha o triângulo basilar do trabalho. Tuyo, Ebony, Amanda Sarmento, Jef Rodriguez, EVEHIVE, Thiago França, Ludom… É um trabalho feito por muitas mãos. Seja em composição, canto, instrumento ou produção, CORTAVENTO pulsa senso comunitário. E para as culturas afro-brasileiras, o indivíduo só faz sentido se estiver vivendo em coletividade. É nesse sentido que as batidas do amapiano de NÃO ME RECONHEÇO, parceria com a Tuyo e Lucs Romero, ou as do uk garage de BADU & 3000, com as presenças de Ebony e CARLO, nos contam do rearranjo das identidades, sociabilidades e do pertencimento coletivo que foram sequestrados no movimento da diáspora africana.


À primeira vista, ouvimos Joca rimar sobre amores, paixões, desgastes, rua e religiosidade, mas a camada percussiva, mais a fundo, revela a conexão inerente aos tambores do mundo e uma narrativa da busca pelo retorno. O discurso, aqui, é claro e afirma a vida. Por natureza, o tambor já representa essa afirmação, seguindo o mito bacongo em que a criação do instrumento foi responsável por alegrar Zambiapungo e permitir, assim, a criação do mundo. Entretanto, a força dos versos, a expertise e inquietude eólicas de Joca dialogam de maneira muito inteligente o profano e o sagrado, convicto de que a salvação é pelo risco, inclusive, do aguidavi no couro do tambor.



1 comentário


pedrogvergueiro
04 de set.

👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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