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CURA: Um circuito que respira arte urbana

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 5 de jun.
  • 8 min de leitura

Num mar de concreto, arte é saber nadar

Por: Bruna Gomes, Isis França e Vitória Pessoa

Última Atualização: 05/06/2025


Via Acervo Túlio Campos
Via Acervo Túlio Campos

Em um cenário urbano dominado por concreto e prédios cinzentos, as cores surgem em arte para mudar o jeito de olhar e viver em Belo Horizonte. Foi nesse contexto que surgiu o CURA – Circuito Urbano de Arte, um dos maiores festivais de arte pública da América Latina, 100% livre e gratuito. Há não muito tempo atrás, em 2017, três mulheres com uma visão coletiva aspiravam em “colocar Belo Horizonte no mapa mundial da arte pública”. Foi pensando alto que Janaína Macruz, Juliana Flores e Priscila Amoni iniciaram o compromisso com a democratização da arte e com a transformação de espaços urbanos de BH em galerias a céu aberto, o que resultou no grande centro tatuado com arte urbana e no portfólio com a maior coleção de arte pública indígena do mundo e as obras mais altas pintadas por mulheres no continente.


O CURA se tornou uma das iniciativas mais relevantes de arte urbana latinoamericano, e, sem fronteiras, realizou sua primeira edição fora do berço, em Manaus no ano de 2023, construindo o primeiro mirante de arte indígena do mundo. O contexto que movimentou o surgimento do circuito foi o da efervescência da ocupação urbana, dialogando com outros movimentos antigos de rua, como a “Praia da Estação”. Para Janaína Macruz:


“O Cura, ele é meio que filho do movimento da praia da estação. É uma época que a gente tinha como máxima ocupar a cidade. Então, aquele encontro ali, aquela manifestação da praia da estação fez todas as áreas da cultura, né, teatro, dança, música, artes visuais e as pessoas dos movimentos sociais se juntarem, se conhecerem e potencializar isso. Quero utilizar o espaço público, né, quero transformar Belo Horizonte numa cidade legal, diferente do Rio, por exemplo, que tem praia e o espaço público, era comum as pessoas irem para o espaço público”.

O CURA não surgiu do nada, ele está apoiado em iniciativas artísticas anteriores para continuar a ruptura em conjunto aos movimentos sociais. A arte de rua em BH é ativa desde os anos 80, quando o grafite ganhava espaço nas periferias da capital. Nesse sentido, o circuito organiza o muralismo público e sistematiza a cultura do grafite com curadoria profissional e apoio institucional. Com isso, o muralismo de rua passou a ser presente na agenda urbana para romper paradigmas de maneira inédita.


Priscila, artista visual que já pintava nas ruas, com Juliana, que já trabalhava com arte urbana ao lado de um muralista, e Janaína, produtora cultural experiente no grafite e no ativismo urbano, decidiram criar o festival. As três já vivenciavam movimentos de rua e tiveram a proposta do CURA “como objetivo na Lei municipal”. O CURA é viabilizado por uma rede de apoios públicos e privados, e no caso de BH a Lei Municipal de Incentivo à Cultura apoia o evento, bem como a Secretaria de Cultura e o Governo do Estado de Minas Gerais. Em Manaus (2023), o patrocínio e apoio foi do Governo do Amazonas por meio da Secretaria de Cultura e Economia Criativa, além da empresa Shell.


Na visão das organizadoras, ele surgiu para dar “respiro e necessária resistência” à população, aproximando arte e público em tempos difíceis. O espaço público por si só é uma tela em branco, carregando a potência de ser um território de afeto, permanência e encontro. O CURA abrange muita festa, feiras, shows e exposições de arte, para convidar as pessoas a assistirem e pertencerem a todo o processo das pinturas. É mais do que um evento cultural e turístico, é um movimento que redefine a paisagem e enriquece a vida comunitária, promovendo a arte como um elemento essencial na construção de uma sociedade mais inclusiva e consciente. Sobre o uso do espaço público em BH, Janaína conta:

“Aqui em Belo Horizonte, o espaço público era mais um caminho de espaço privado para outro. Você ia para uma festa na casa de alguém ou você ia para ver um show, ou um museu e tal. Então, eu acho que a cidade ali, esse grande encontro e essa máxima de ocupar a cidade ficou muito marcada na nossa geração”.

A grande intenção do festival nasce do conceito da acessibilidade, para alcançar todas as classes, idades, gêneros e públicos. A diversidade cultural e a ancestralidade são celebradas no CURA, bem como a democratização radical da arte e do grafite. O grafite é instrumento de transformação social para jovens das periferias, que levam com a arte inspiração para outros jovens das comunidades. 


Centrado em inclusão social, igualdade racial e de gênero o movimento dá oportunidade a artistas negros e indígenas e promove visibilidade de suas obras. O festival amplifica vozes negras, indígenas e de outras minorias sociais para que a iconografia reflita a diversidade social de BH. Com inclusão e diversidade, a curadoria feita pelas idealizadoras é fundamentada na paridade de gênero tanto na equipe de produção quanto nos artistas. O CURA hoje detém “as empenas mais altas da América Latina pintadas por mulheres”, além da maior obra pública já feita por uma artista indígena e da maior coleção de murais feitos por mulheres no mundo. Esses recordes visuais explicitam o protagonismo feminino no festival.


Desde sua primeira edição, o CURA tem promovido verdadeiras acupunturas urbanas. Em vez de grandes reformas, o festival apostou desde o início no poder de intervenções pontuais, simbólicas e profundamente conectadas com o território, que fossem capazes de transformar não só apenas a paisagem urbana, mas o modo como a cidade é percebida, vivida e sentida pelas pessoas que ali vivem e circulam diariamente. E o que diferencia o CURA é o olhar afiado para curadoria que suas criadoras carregam.


O ponto de partida foi a rua Sapucaí, no bairro Floresta. Foi ali que o conceito de mirante de arte urbana nasceu em Belo Horizonte: a possibilidade de a partir de um único ponto da cidade poder observar todas as obras de uma edição do festival. “O diferencial que o CURA tem no mundo é esse: a gente escolhe um ponto da cidade de onde todas as obras podem ser vistas. É como se fosse uma grande coleção, como se fosse uma sala de exposição”, explica Janaína Macruz, uma das criadoras do festival.


Na Sapucaí, o mirante é horizontal. De um lado, os olhos percorrem fachadas gigantescas grafitadas por artistas locais e internacionais; do outro, repousam sobre a Serra do Curral, paisagem símbolo da capital mineira. A rua se tornou um museu a céu aberto, mas também muito mais do que isso, e não demorou para que a intervenção artística provocasse um efeito cascata no espaço urbano: a rua ficou famosa entre os moradores da cidade e uma série de rolês começaram a nascer. “A gente tatuou a cidade”, é como Janaína define, “Transformamos a rua Sapucaí num ponto turístico. Hoje em dia, se você não quer estar num lugar fechado à noite, onde você vai em Belo Horizonte? Vai pra Sapucaí.”


O impacto na economia e na cena cultural da cidade foi tão grande que em 2024 a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte começou a reforma da rua para fechar a passagem de carros e tornar o espaço mais seguro, atrativo e interessante para a circulação de pessoas.


Outros pontos da cidade também foram transformados. A Praça Raul Soares, tradicional rotatória de trânsito intenso no coração de BH, também ganhou um mirante, e ali ele foi planejado para aproveitar o formato circular da praça, com obras que ocupam prédios que estão rodeando os 360 graus da praça, cercando o público por todos os lados. 


Durante a 6ª edição do festival, realizada em 2021, a Praça recebeu uma de suas mais marcantes intervenções artísticas, a obra “Anaconda”, dos peruanos Sadith Silvano e Ronin Koshi, foi pintada em uma das vias que circunda a rotatória e precisou ser executada ininterruptamente entre os dias 29 de outubro e 1º de novembro, sendo a primeira vez em que uma obra foi executada ininterruptamente 24 horas por dia. A obra que simboliza uma cobra, “mãe das águas e do rio Amazonas”, celebra e homenageia entidades e evoca raízes do povo Shipibo.


Já em 2024, a icônica rotatória foi espaço de convivência e contemplação ao receber a instalação interativa “Brincacidade”, criada pela arquiteta Isabel Brant, que foi inspirada na geometria da praça e nos eixos das avenidas que a cortam, com oito portais coloridos e diversos totens interativos, ambiente perfeito para crianças explorarem.  A intervenção ressignificou o espaço e provocou mudanças de comportamento nos moradores. “Ano passado (2024), vários moradores desciam para brincar com as crianças e diziam: ‘pô, eu nunca vim aqui pra isso’. Outros vinham correr, sentavam pra descansar, liam um livro. A praça virou um lugar de convivência”, conta Janaina.


Também em 2024, o CURA foi além das montanhas de Minas Gerais e pousou em Manaus com o projeto CURA Amazônia. Pela primeira vez, o festival se estruturou a partir de uma curadoria de artistas indígenas, que criaram obras no entorno do Teatro Amazonas, um dos cartões-postais mais importantes da cidade, e transformou o local no único mirante de arte indígena do mundo. A edição em Manaus reforçou o compromisso do festival com a valorização dos povos originários, a preservação ambiental e a luta contra o apagamento cultural.


Na primeira edição da Virada Sustentável BH (2024) o CURA fez parte das intervenções com um mural homenageando o Quilombo Manso e denunciando os impactos da mineração na Serra do Curral. A participação evidenciou o potencial da arte urbana como ferramenta de denúncia, memória e resistência. “Foi super legal o processo. Os artistas super confluíram”, lembrou Janaina, destacando a potência da criação coletiva em torno de temas socioambientais. “Fizemos uma curadoria massa, com artistas indígenas que trouxeram temas como o Quilombo Manso e a luta pela preservação da Serra do Curral”.


Em paralelo às intervenções visuais, o CURA passou por uma importante transformação institucional. Em 2024, o festival se tornou o Instituto CURA, possibilitando que a atuação do projeto vá para além das edições anuais. “Agora a gente vai fazer vários projetos, não só o festival. Formação, pesquisa, seminários, residências artísticas e ações menores de pintura”, explica Janaina. O novo formato marca uma virada estratégica, consolidando o CURA como uma plataforma política, educativa e artística de atuação contínua.


Essa expansão também reverberou na cena de arte urbana. Se no início havia resistência entre artistas locais à presença de muralistas de fora, hoje o CURA é reconhecido por fortalecer a produção local e posicionar Belo Horizonte no radar internacional. “Quando o festival aconteceu, todo mundo mudou de ideia. Artistas de fora começaram a vir, viver a cidade, e isso fortaleceu os artistas locais também”, conta Janaina. A projeção global do festival atrai muralistas do mundo todo interessados em pintar na capital mineira justamente por causa da reputação construída pelo CURA. “A cena de arte urbana é toda conectada. Artistas da Europa e dos EUA têm vontade de vir pra cá por causa do CURA. A gente cumpriu esse objetivo”, completa.


Além disso, o festival provocou um efeito no mercado criativo da cidade. Empresas passaram a investir em murais próprios, eventos de música incorporaram obras de arte urbana às suas experiências e o grafite, expressão artística antes vista de forma pejorativa, deixou de ser visto como marginal para se tornar parte da paisagem institucional e estética da cidade. “Aqueceu o mercado, fortaleceu a cena local e movimentou outros setores também”, conclui Janaina.


A acupuntura urbana, significativa na atuação do CURA, reverbera no tecido da cidade. Assim, o festival segue ativando memórias, afetos e encontros para revigorar a relação dos moradores com seus territórios. Reconfigurar o olhar sobre a cidade, potencializar o uso dos espaços públicos e promover conexões de identidade e pertencimento é o que o circuito faz. O CURA, portanto, vai além da estética; ele simboliza resistência. Por meio da arte acessível e da curadoria comprometida com a diversidade, o festival transforma a cidade por dentro e reafirma o espaço público como o que ele deve ser: coletivo.


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