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Decolonialidade e ativismo na música pop: por que o fenômeno Bad Bunny pode definir uma década?

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 15 de out.
  • 5 min de leitura

Entre vulnerabilidade, contestação e afirmação cultural, o artista cria um inventário sonoro da memória e das tensões latino-americanas


Por: Eduardo França

Última Atualização: 15/10/2025


Foto por: Eric Rojas
Foto por: Eric Rojas

Identificar o zeitgeist vigente — os comportamentos e tendências que definem uma época, aquele clima cultural que marca um período — é tarefa ingrata. O espírito do tempo nunca se apresenta de imediato, ele se mistura à pressa do agora até que a memória o decante. Quando nos propomos a capturar o zeitgeist dos anos 2020, no entanto, há um traço forte que salta à frente: a centralidade inédita da música e da estética latino-americana no cenário pop global. No ano de 2020, o posto de artista mais ouvido mundialmente no Spotify foi ocupado por um porto-riquenho — e isso se repetiu nos dois anos seguintes. Trata-se do cantor Bad Bunny (Benito Ocasio), que recentemente foi referenciado pela revista The New Yorker como “o maior pop star do mundo”.


O fenômeno, contudo, vai além dos números: ele revela uma virada simbólica. Com os olhares do mundo inteiro voltados para a América Latina, Bad Bunny não abre mão de afirmar, sem concessões, uma identidade profundamente latino-americana. Sua postura artística aponta para algo maior: um rompimento com a ideia de ser “neutralizado” ao alcançar os grandes centros de poder cultural — um desfecho comum na trajetória de artistas latino-americanos em seus auges internacionais, como Shakira e Ricky Martin. Nessa escolha, inscreve-se um enfrentamento à lógica que insiste em higienizar a arte latino-americana para torná-la palatável ao norte global. É assim que Bad Bunny lidera um movimento de resistência sonora e simbólica, aquele que devolve a América Latina à centralidade do debate.


Seu último disco, Debí Tirar Más Fotos (2025), deixa claro que quanto mais visibilidade ele alcança, mais radical se torna sua afirmação cultural. O álbum assume formas de carta e crônica, a começar pelo título, uma espécie de confissão: “eu deveria ter tirado mais fotos”. Apesar de soar como uma frase banal, ela guarda um lamento maior. Entre batidas de reggaeton, perreo e salsa, o artista narra dilemas profundos, colocando a memória como questão central — por um lado, Bad Bunny evoca a memória no sentido mais íntimo, da lembrança e da saudade, e por outro, a coloca como um projeto político, um ato de desobediência frente ao apagamento histórico da cultura de seu país.  Debí Tirar Más Fotos é um disco dedicado à identidade, à dor da perda, à ferida colonial e ao desejo de não deixar que as coisas simplesmente passem.


Capa do álbum Debí Tirar Más Fotos
Capa do álbum Debí Tirar Más Fotos

O que deixa o álbum ainda mais fascinante é a diversidade de aproximações possíveis dentro do seu recorte conceitual. Em Baile Inolvidable, Bokete e Turista, Bad Bunny assume um tom vulnerável, sente a dor de uma perda afetiva e expõe suas inseguranças. É quando percebemos a face mais introspectiva de Benito: um eu-lírico sensível, nostálgico, quase diarístico, e uma musicalidade que ora tensiona, ora acalenta, sublinhando a saudade. Ao mesmo tempo, faixas como Lo Que Pasó a Hawaii e La Mudanza revelam um subtexto contestador, que denuncia o turismo predatório, a gentrificação e o apagamento das narrativas porto-riquenhas. Por esse ângulo, Bad Bunny nos mostra que o desejo de permanecer em Porto Rico — afirmado em todo o seu projeto, desde o álbum Un Verano Sin Ti (2022) — carrega não apenas uma dimensão afetiva, mas também política.


Em um terceiro registro, quando não se mostra tão vulnerável ou contestador, Bad Bunny propõe — em faixas como Eoo, Voy a Levarte Pa’ PR e Café Con Ron — um gesto de afirmação de sua cultura simplesmente ao amplificar à potência máxima a sonoridade explosiva e a linguagem sem pudor de gêneros porto-riquenhos, do perreo à música caribenha tradicional, como se, mesmo evocando as dores históricas de seu país, ainda fosse necessário se afirmar de maneira deliberadamente crua e indomável. Sob todas essas chaves de sentido, o disco emerge como um inventário emocional e político da identidade porto-riquenha.


Recentemente, o que o álbum articulava em som e sentimento encontrou ressonância em seu feito mais monumental até agora: uma residência de trinta shows consecutivos em Porto Rico, esgotados do início ao fim. Um marco não apenas em sua carreira, mas na economia e no senso de identidade de um povo. Durante dois meses, a ilha viveu uma mobilização sem precedentes. Hotéis lotados, voos extras, ruas tomadas por turistas, jornalistas e fãs de todas as partes do mundo. A economia local foi impulsionada, mas mais do que isso, os porto-riquenhos se viram refletidos em um espetáculo feito para eles, enquanto Bad Bunny mantinha sua prioridade clara: cantar para sua gente, em sua terra, em sua língua.


Foto por: Amazon Prime Video
Foto por: Amazon Prime Video

O último show, transmitido ao vivo pela Amazon Prime para uma audiência global, não foi só espetáculo, foi geopolítica. Diante de uma cenografia ao mesmo tempo grandiosa e afetiva, que recriava, como num delírio tropical, as montanhas, o mar e as casas coloridas de Porto Rico, Bad Bunny transformou o palco em extensão viva de sua terra. Entre uma atmosfera frenética e silêncios carregados de emoção, Benito conduziu o público por um rito coletivo de pertencimento, um chamado à memória e ao orgulho nacional. “Eu sempre tive o mesmo amor, a mesma paixão pelo que faço — prometo que nunca vou mudar”, disse, e sua voz, amplificada por milhões de telas, soou como um juramento à ilha e à própria ideia de permanência.


Os ecos do disco Debí Tirar Más Fotos, porém, apenas começaram: em 2026, Bad Bunny fará história ao liderar o halftime show do Super Bowl — o maior evento esportivo e midiático dos Estados Unidos. Entre a repercussão provocada por sua presença em território estadunidense e a reação de um governo marcado por políticas anti-imigrantes, Benito promete inflamar ainda mais o debate sobre a situação política de Porto Rico, transformando o palco em lente para expor tensões sociais, questionar narrativas dominantes e projetar a urgência de seu país à escala global.


O impacto do projeto de documentação identitária de Bad Bunny revela que nosso tempo está permeado por uma perspectiva decolonial, que contesta a hegemonia anglófona e celebra povos sub-representados. Seu sucesso global trouxe consigo toda uma leva de artistas latino-americanos que compartilham da mesma energia de reterritorialização, como Peso Pluma, Karol G e a própria Anitta — que só no seu disco mais recente, Funk Generation (2024), parece ter entendido que reafirmar seu território é mais urgente do que neutralizá-lo, após anos de flerte com uma internacionalização que parecia cobrar um certo apagamento.


Bad Bunny encarna os conflitos, os desejos e as reconfigurações mais profundas da contemporaneidade. Ao representar a possibilidade de um centro que emerge da periferia, ele transforma visibilidade em território político. Mais do que um ídolo pop, Benito se tornou termômetro cultural, espelho e ruptura. Seu trabalho reorganiza o jogo: descentraliza o mapa da cultura global, questiona os critérios de pertencimento, redefine o que pode ser mainstream. O que ainda está por vir — novos artistas, linguagens e expressões que se afirmam com a mesma força — talvez revele até onde essa virada latino-americana pode chegar. Se Bad Bunny expandiu a fronteira, o desafio agora é sustentar o território conquistado.



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