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Guillermo del Toro: fabular para sobreviver

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 26 de jun.
  • 6 min de leitura

Cineasta mexicano mostra como realidade e fantasia, elementos indissociáveis, são necessários para compreender e superar traumas individuais e coletivos


Por: Ana Clara Moreira

Última atualização: 26/06/2025

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro | Netflix/Divulgação
O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro | Netflix/Divulgação

Detentor de inúmeras vitórias e indicações em premiações cinematográficas, o mexicano Guillermo del Toro é internacionalmente reconhecido por misturar fantasia, suspense e terror, sem deixar de lado doses fundamentais de realidade, apresentadas em contextos históricos que fazem parte do imaginário coletivo. Desde o princípio de sua filmografia, em títulos como Cronos (1993) e Mutação (1997), já se observa essa característica, que, com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais marcante.


Os roteiros criados ou adaptados por ele também são habitualmente estruturados como fábulas – narrativas em que, de acordo com o dicionário Michaelis, “se aproveita a ficção alegórica para sugerir uma verdade ou reflexão de ordem moral, com intervenção de pessoas, animais e até entidades inanimadas”. Alguns dos resultados da combinação entre forma e conteúdos tão específicos é o que a Revista Curió analisa, a partir de obras assinadas pelo cineasta nos últimos anos.


O mundo é um lugar cruel


Vencedor de três Oscars e três BAFTAs, O Labirinto do Fauno (2006) se passa em 1944, período final da Guerra Civil Espanhola. Neste contexto histórico, Ofélia – que tem apenas dez anos – se muda, com a mãe grávida e adoentada, para a casa do padrasto, um cruel oficial fascista que luta para exterminar guerrilheiros locais.


Integrando a construção das premissas norteadoras do longa, a criança explora os arredores da nova casa, onde descobre um labirinto habitado por um fauno, que a delega três tarefas. Ali, o ser mitológico explica que o sucesso das missões serviria para reconhecê-la como a princesa perdida de um mundo subterrâneo.

Ofélia recorre à imaginação para lidar com a realidade | O Labirinto do Fauno/Reprodução
Ofélia recorre à imaginação para lidar com a realidade | O Labirinto do Fauno/Reprodução

Na mesma medida em que precisa encarar uma realidade cada vez mais brutal, Ofélia se apega ao universo fantástico apresentado pelo sátiro – até então apreendido por ela apenas por meio dos livros. Assim, figuras como o fauno, as fadas, o sapo gigante e o homem pálido são desenvolvidas para representar medos e desafios enfrentados pela protagonista com bravura, empatia e honra.


Doutoranda em Artes Visuais, Yasmin Pol da Rosa destaca que O Labirinto do Fauno “é estruturado em um formato clássico de contos de fadas, no qual é possível identificar a dualidade entre bem e mal, explícita em personagens marcados pela bondade ou vilania; contudo, não é possível visualizar com exatidão as fronteiras entre o real e o fantasioso”.


Alguns destes aspectos são facilmente identificados, como o contraste entre bondade e vilania, percebido, no primeiro caso, na relação entre Ofélia e a governanta Mercedes; e, no segundo, entre a menina e o padrasto, o nefasto capitão Vidal – ambos coadjuvantes fundamentais para o arco da protagonista, mas nitidamente opostos entre si. Por outro lado, a impossibilidade de determinar os limites entre real e fantasia está exatamente nas dúvidas que pairam sobre o enredo: Ofélia era mesmo uma princesa? O fauno existia? Quem seriam o sapo e o homem pálido? E aquele fim, era mesmo um fim? Todas questões que tornam a experiência ainda mais enriquecedora.


Ele não sabe o quanto sou incompleta


Também ambientado em um cenário de conflito internacional – desta vez, a Guerra Fria –, A Forma da Água (2017) conta o drama vivido por Elisa Esposito, mulher muda que se apaixona por uma espécie de “deus-peixe” sequestrado, por militares estadunidenses, dos rios que permeiam a floresta amazônica. Faxineira responsável pelo espaço onde a criatura é encarcerada e torturada, ela se vale do lugar de invisibilidade que ocupa sob a perspectiva dos antagonistas para estabelecer uma relação de confiança e se comunicar com aquele híbrido.

”Incapaz de perceber sua forma, encontro você ao meu redor” | A Forma da Água/Reprodução
”Incapaz de perceber sua forma, encontro você ao meu redor” | A Forma da Água/Reprodução

Com a conquista de quatro estatuetas do Oscar, entre elas a de Melhor Filme e a de Melhor Direção, A Forma da Água conta com “uma gama de personagens pertencentes a minorias, e as relações entre eles (e a forma como cada um deles trata outros personagens e outras minorias) é o cerne da narrativa”, como afirmam o doutor em Literatura Comparada Alexander Meireles da Silva e a mestranda em Estudos da Linguagem Gabriela Spinola Silva.


O grupo das minorias é constituído, além da protagonista, por Zelda, mulher negra que vive submissa no casamento; Giles, homem mais velho em conflito com a sexualidade; e o Dr. Robert Hoffstetler, cientista russo infiltrado no laboratório. Em diferentes circunstâncias, eles ajudam uns aos outros e principalmente a Elisa, que, acolhida em sua incompletude, assume essa característica como combustível para se fortalecer e lidar sozinha, se necessário, com as consequências das próprias decisões – especialmente a de resgatar o ser amado do cativeiro em que era mantido.


Além disso, o “deus-peixe” é um bom exemplo do paradoxo entre os personagens. Mesmo em desvantagem, ele não teme enfrentar seus algozes, como o coronel Richard Strickland, que tem dois dedos decepados durante um embate com a criatura. Sob outra ótica, mesmo se sentindo ameaçado, ele usa seus poderes sobrenaturais para curar uma ferida no braço de Giles, retratando, de maneira muito sensível, como são fortes os laços forjados sem segundas intenções.


Por que gostam dele e não de mim?


Se o italiano Carlo Collodi, autor da história do boneco de madeira, pretendia ensinar às crianças uma lição sobre a importância de falar a verdade, Pinóquio de Guillermo del Toro (2022) ressignifica a ideia e fala sobre a importância da autenticidade, alertando os adultos sobre o papel deles para garantir uma infância livre, na medida do possível, de comparações e cobranças exageradas.


A mais recente animação do cineasta mexicano mantém um dos principais padrões dos outros títulos e tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. É durante um bombardeio contra o povoado onde vive que Gepeto perde o filho e único familiar. Inconsolável e marginalizado, o marceneiro entalha uma peça à semelhança do menino morto, e quem decide trazê-lo à vida não é uma fada, mas espíritos da floresta que se solidarizam com aquele pai em luto.

Se o homem crucificado também era um boneco de madeira, porque recebia um tratamento tão diferente daquele atribuído a Pinóquio? | Pinóquio de Guillermo del Toro/Reprodução
Se o homem crucificado também era um boneco de madeira, porque recebia um tratamento tão diferente daquele atribuído a Pinóquio? | Pinóquio de Guillermo del Toro/Reprodução

No roteiro, o diretor adapta, com fidelidade, trechos do texto original, mas não hesita em transmutar fragmentos – escolha capaz de provocar inúmeras interpretações, sejam elas relativas a questões de ordem filosófica, social ou política. Tal recurso pode desagradar quem prefere filmes que tratam com mais profundidade de apenas um ou outro assunto, mas não diminui o impacto de se deparar com um personagem tradicional apresentado, ao mesmo tempo, de maneira tão subversiva e vulnerável.


O mestre em Comunicação Murilo Bronzeri menciona que, na releitura, del Toro ainda “traz reflexões existenciais, por meio das quais medita sobre vida e morte, já que o boneco-menino pode morrer e renascer quantas vezes quiser, desde que espere um tempo que aumenta pouco a pouco a cada experiência de morte”. É justamente a partir desta percepção – de que a finitude é o que traz sentido para a vida na Terra –, que tanto Pinóquio quanto Gepeto encontram novos sentidos para as jornadas individuais e para os caminhos que percorreriam juntos.


Adelante!


No segundo semestre de 2025, Guillermo del Toro volta aos holofotes com uma versão do clássico Frankenstein, de Mary Shelley. Descrita pelo cineasta como o “projeto dos sonhos”, a produção deve ter uma breve exibição nas telonas, com o objetivo de se qualificar para concorrer ao Oscar, antes de entrar para o catálogo da Netflix. Na sequência, também em parceria com o streaming, o mexicano adaptará outro romance britânico, O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro. Embora ainda não haja muitos detalhes sobre os novos trabalhos, certamente serão obras monstruosas e fantásticas.


Dono de uma capacidade criativa que merece destaque na indústria do cinema, del Toro desenvolve com maestria alegorias sobre as relações humanas, os efeitos devastadores das guerras e a necessidade de um olhar atento a grupos marginalizados, como mulheres e crianças – e faz tudo isso por caminhos que não só retratam fantasias do próprio diretor e dos personagens, mas instigam a imaginação do espectador.



1 comentário


fernanda55l
27 de jun.

👏🏼👏🏼👏🏼

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