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O traço a traço da animação contemporânea

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 4 de set.
  • 6 min de leitura

Dos primeiros rascunhos às técnicas digitais, o cinema de animação atravessa mais de um século de transformações estéticas e narrativas que refletem mudanças sociais, culturais e tecnológicas


Por: João Henrique e Vitor Pepino

Última atualização: 04/09/2025


Clássico da animação Willie do Barco a Vapor - Revista Digital Galileu/Reprodução
Clássico da animação Willie do Barco a Vapor - Revista Digital Galileu/Reprodução

Dos primeiros traços desenhados até as paisagens digitais que hoje são similares à realidade, o cinema de animação percorreu um caminho marcado tanto pela inovação técnica quanto pela ousadia estética. Mais do que acompanhar avanços tecnológicos, cada nova geração de animadores reinventa a forma das narrativas, expandindo a linguagem visual e contestando a ideia de que a animação se limita ao público infantil. O contraste entre produções do século XX e do presente destaca, além da evolução técnica, a diversidade de histórias que refletem questões sociais, culturais e existenciais.


Obras como Pinóquio (1939) marcaram a consolidação da animação como arte cinematográfica, com cenários pintados manualmente e com uma narrativa moralizante que refletia a tradição dos contos de fadas. Mais tarde, a era digital substitui o traço manual pelo CGI (imagens geradas por computador) por meio de produções como Toy Story (1995), considerado o pioneiro da técnica. Hoje, as animações continuam explorando a verossimilhança proporcionada pela natureza 3D e estilos híbridos, a exemplo de Klaus (2019) e Robô Selvagem (2024).


O conjunto de características atuais do universo animado demonstra que essas produções podem assumir múltiplas formas. É uma relação de diálogo entre o passado e o presente, já que há uma ponte que liga a tradição e a inovação.


A origem da animação no cinema remonta a quando técnicas de desenho quadro a quadro começaram a criar ilusão de movimento em tela. O curta Humorous Faces of Funny Faces (1906), de J. Stuart Blackton, exibiu figuras apresentadas em quadro negro que se moviam em pequenas ações, sendo considerado o pioneiro das animações no cinema. Pouco tempo depois, a obra francesa Fantasmagorie (1908), com traços brancos simples sobre um fundo preto, é tida como a primeira animação tradicional.


Na sequência, produções como Gertie, the Dinosaur (1914), do norte-americano Winsor McCay, aprimoraram o potencial narrativo do recurso. No entanto, foi em 1937, com a produção de Branca de Neve e os Sete Anões, da Disney, que a animação se consolidou na sétima arte. O filme utilizou a técnica da câmera multiplano, uma estrutura vertical que continha várias camadas de desenho, isolando cada elemento diferente na composição. As camadas podiam ser movidas independentemente umas das outras, o que permitia criar as cenas e passear pelo plano de fundo.


A câmera multiplano permitiu uma revolução nas produções animadas - The Walt Disney Family Museum/Reprodução
A câmera multiplano permitiu uma revolução nas produções animadas - The Walt Disney Family Museum/Reprodução


O filme da Disney inaugurou a chamada “Era de Ouro” da animação e abriu terreno para que o gênero fosse reconhecido não apenas como entretenimento, mas também como expressão artística. A produtora liderou o cinema com clássicos por volta de 1940 a 1960, como Pinóquio (1940), Fantasia (1940) e Cinderela (1950). Ainda nesse período, estúdios como Warner Bros. e Hanna-Barbera impulsionaram os curtas animados com a criação de personagens icônicos, como Pernalonga e Patolino, do Looney Tunes, e Scooby-Doo, respectivamente, que ampliaram o campo da animação para o humor.


Ainda nesse período, no Japão, as animações (ou animes) também ganhavam espaço no cinema. Namakura Gatana (Espada Cega), produzido por Junichi Kouchi em 1917, é um dos primeiros na área. A obra foi feita por meio da técnica quadro a quadro, desenhado em giz, com aproximadamente 2 minutos de duração. A incerteza sobre o pioneirismo vem do fato de que a maioria dos primeiros animes foram desmontados após o término das bobinas. Mais tarde, em 1948, foi fundada a Japan Animated Films, que foi comprada pela Toei Animation em 1956. Dois anos depois, seria lançado pela produtora o longa-metragem Hakujaden (A Lenda da Serpente Branca), de 1h18, considerado o primeiro anime colorido.


Cena de Namakura Gatana, de 1917 - Nishikata Film Review/Reprodução
Cena de Namakura Gatana, de 1917 - Nishikata Film Review/Reprodução

Já as produções europeias, como Animal Farm (1954), o primeiro longa animado britânico e inspirado na obra de George Orwell, produzido pelo estúdio Halas and Batchelor, e La Planète Sauvage (1973), do francês René Laloux, introduziram o cinema de animação também no campo da crítica social. É visto que, com a diversidade dessas produções entre os países, o imaginário global se voltou para um olhar mais poético, político e contemplativo sobre as animações.


A maior parte do século XX foi marcada por animações produzidas de forma manual, geralmente pela técnica de pintura em acetato que garantia a fluidez, como nos clássicos da Disney. Esses primeiros traços definiram uma identidade estética do que seria a animação tradicional. Essa lógica se transformou com a chegada da computação gráfica, que na década de 90 redefiniu os parâmetros visuais do setor. Nesse sentido, há discussões de que Toy Story realmente tire o pioneirismo da animação brasileira Cassiopéia (1996), de Clóvis Vieira.


Lançada um ano após a produção da Disney, Cassiopéia foi descontinuada por falta de investimentos e devido à pouca visibilidade. Porém, pode ser consideradao uma protagonista na entrada das animações na computação gráfica por ter sido feita inteiramente por meio de técnicas de modelagem 3D, enquanto Toy Story, em 1995, mudou tudo. De repente, os brinquedos que deixávamos no canto do quarto ganhavam vida, personalidade e dilemas existenciais. Mais do que a primeira animação feita inteiramente em CGI (imagens geradas por computador), o filme trouxe uma mudança fundamental: provar que animar podia ser sobre qualquer coisa, não apenas sobre mundos mágicos.


Depois de Woody e Buzz, vieram ondas de inovações: Shrek (2001) debochou dos próprios contos de fadas que fundaram o gênero e Procurando Nemo (2003) usou a água digital para criar um oceano que parecia real, enquanto Os Incríveis (2004) apostou em famílias disfuncionais com superpoderes. Aos poucos, os temas ganharam densidade, se aproximaram de conflitos adultos e passaram a competir em pé de igualdade com produções de carne e osso.


Disney Brasil/Reprodução
Disney Brasil/Reprodução

A era híbrida: tradição encontra futuro


Hoje, vivemos um momento curioso: a tecnologia digital chegou a um nível tão sofisticado que, paradoxalmente, muitos animadores decidiram olhar para "trás". O resultado são filmes híbridos, que misturam 2D e 3D, pintura digital e técnicas artesanais. Klaus (2019), por exemplo, simulou profundidade e luz em desenhos que, na prática, eram bidimensionais — criando um efeito visual inédito, que parecia ao mesmo tempo moderno e clássico.


Enquanto isso, Homem-Aranha no Aranhaverso (2018) explodiu as fronteiras da estética animada ao misturar quadrinhos, colagens, animação 3D e cortes que pareciam páginas virando. Já Robô Selvagem (2024) aposta no hiper-realismo, quase confundindo o público: são imagens de floresta tão detalhadas que fica difícil acreditar que tudo ali foi construído dentro de um computador.


Muito além das crianças


Outra mudança significativa está no público. Se antes a animação era pensada para crianças (com adultos como acompanhantes), hoje os estúdios falam com várias gerações ao mesmo tempo. Pense em Divertida Mente (2015): enquanto crianças se divertem com personagens coloridos, os adultos enxergam metáforas profundas sobre amadurecimento e saúde mental. Soul (2020), da mesma Pixar, vai ainda mais longe ao discutir propósito de vida e mortalidade. São reflexões que ultrapassam qualquer limite etário.


No campo independente, a diversidade se expande ainda mais. O estúdio japonês Studio Ghibli, com A Viagem de Chihiro (2001), mostrou como é possível abordar espiritualidade, identidade e sociedade industrial sem abrir mão do encanto visual. Já animações francesas como As Bicicletas de Belleville (2003) revelam que o humor e a crítica social podem ser tão eficazes quanto qualquer efeito digital.


 Uma ponte entre passado e futuro


Se olharmos com calma, perceberemos que há sempre uma ponte entre tradição e inovação. O que Branca de Neve fazia com pincéis, Klaus refaz digitalmente. O que Pinóquio ensinava sobre moralidade, Divertida Mente revisita em forma de psicologia emocional. O cinema de animação nunca abandonou suas raízes, apenas encontrou novas formas de atualizá-las.


No fim das contas, animação não é um “gênero”, mas uma linguagem. É um jeito de contar histórias que pode ser infantil, adulto, dramático, engraçado, filosófico ou tudo isso ao mesmo tempo. Pode ser feita com traços rabiscados em folhas, com pixels brilhantes ou até com algoritmos de inteligência artificial. O que não muda é a essência: a capacidade de dar vida ao que, em tese, deveria ser inanimado.


E talvez seja por isso que continua nos encantando. Porque, quando a tela se ilumina e vemos um boneco de madeira, um peixe-palhaço ou um robô solitário ganhando sentimentos, lembramos que o cinema, animado ou não, é sempre sobre nós.


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