O Comida di Buteco e o Patrimônio Imaterial
- Revista Curió
- 22 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de abr.
Como um concurso de butecos molda o imaginário coletivo, principalmente sobre aquilo que consideramos um buteco?
Por: Laura Portugal e Pedro Víctor Ferreira
Última Atualização: 22/04/2025

O maior concurso de gastronomia do Brasil completa 25 anos de resistência cultural. Com o objetivo de resgatar a “comida raiz” em Belo Horizonte, membros da extinta Rádio Geraes decidiram, nos anos 2000, criar um concurso chamado Comida di Buteco. Presenciando um cenário em que franquias, redes de restaurantes e fast foods tomavam conta da cidade, apresentaram o projeto e, em sua primeira edição, o concurso conquistou o público e a crítica da capital mineira. Em 2004, com o fim da Rádio Geraes, o Comida di Buteco se tornou um evento independente e, a partir de 2008, se expandiu para outras cidades - dentro e fora de Minas Gerais, mas respeitando sempre a cultura e a regionalidade de cada local.
A lógica do concurso é simples. O que define o melhor Buteco do Ano de cada um dos 27 circuitos participantes - isso engloba quase 50 municípios de todas as regiões do país - são os resultados obtidos em duas categorias de votação: a do público e a do júri selecionado, cada uma delas representando 50% do peso de voto na apuração final. Entre os critérios de avaliação, estão o petisco em si, a higiene do local, o atendimento e a temperatura da bebida. Para votar, basta pedir ao garçom a cédula de preenchimento — feita em papel justamente para garantir a acessibilidade de um bom buteco raiz. Com intuito de garantir a transparência e a honestidade, os votos são apurados por um instituto de pesquisa independente. Aqueles butecos que desejam participar do concurso devem se atentar às principais condições: ser um buteco familiar, tendo pessoa responsável à frente do negócio — e não são permitidos butecos de rede/franquias. No fim, o vencedor de cada circuito regional compete pelo título de melhor buteco do Brasil.
Neste ano, do dia 11 de abril ao dia 11 de maio de 2025, a mais nova edição do Comida di Buteco se apresenta com o tema “Paixão Pelo Buteco”, celebrando 25 anos não apenas de sabores, mas também de regionalidade, cultura e afetos que transbordam com as histórias das pessoas que têm o buteco como sinônimo de vida. Aqui, vale ressaltar que a grafia buteco com u surge justamente para respeitar a história de onde o festival surgiu. Segundo a própria organização do Comida di Buteco, o buteco com u “é como carinhosamente os mineiros chamam seus bares. Significa, acima de tudo, aquilo que é simples e autêntico. É sinônimo de comida boa, ambiente democrático e descontração.”
Para entender sobre o funcionamento e, precisamente, sobre a dimensão imaterial que envolve o projeto, a Revista Curió convidou a Coordenadora do Comida di Buteco em Minas Gerais, Isadora Salazar, para uma entrevista sob a ótica do patrimônio imaterial, da “comida raiz” e do espaço do buteco promovida pelo festival, bem como seus significados históricos e culturais na vida dos mineiros. Isadora está no cargo há quase dois anos, mas o Comida di Buteco está na vida dela desde a infância, quando frequentava os bares com seus pais. Ela afirma que é um privilégio visitar os butecos mineiros, conhecer histórias das famílias que gerenciam esses espaços e enxergar a gratidão dessas pessoas pelo festival que ajudou a promover seus negócios. E é essa a “alma de buteco” que o concurso tenta preservar. Para Isabela, a representação do Comida di Buteco é justamente o “buteco de dono”, como a coordenadora diz. Aquele estabelecimento em que é possível enxergar que quem está à frente do negócio é a pessoa dona do buteco:
“Isso representa o Comida di Buteco, é história! [...] E a gente conta histórias pelo Brasil inteiro, ‘né’? Seja histórias de superação, histórias de dificuldade, histórias de transformação! [...] Mostrar que em qualquer lugar do Brasil, existe um pequeno negociante, que o dono está ali à frente, que ele é o cozinheiro, faxineiro, garçom, ele faz tudo… E com o Comida di Buteco, ele tem a oportunidade de expandir o seu negócio.”
Essa expansão de comércios locais é uma das grandes metas do Comida di Buteco. Isadora conta que, ao longo das edições, diversos butecos compartilharam a forma com que participar do festival aumentou a rotatividade de clientes, mesmo após o fim do concurso. Comércios reviveram, cresceram e se reinventaram com o auxílio do evento e de seus patrocinadores. O festival, portanto, vai além de um evento culinário. A organização do Comida di Buteco busca valorizar bares que contam uma história. Para Isadora, é por isso que, após 25 anos, eles ainda se mantêm tão atuais:
“Mesmo com o mundo mudando e atualizando, tem determinadas coisas que não se perdem. Por mais que o mundo seja tecnológico, nada vai substituir uma conversa no olho no olho, uma mesa de buteco, amigo dando gargalhada, você vendo seu time ganhar, perder. Você tem ali um lugar tão democrático que você se sente em casa. [...] Buteco é extensão da sua casa. Porque a casa da gente nunca vai mudar. Aconteça o que acontecer, você sempre vai ter aquele ponto de refúgio de conforto na sua casa. E é isso que o Comida di Buteco e os butecos participantes passam”.
Para além da relevância alcançada pelo concurso, que hoje já vai de Manaus a Porto Alegre, a cultura dos butecos de BH que o inspirou não se explica apenas pelos números. Ainda que a cidade tenha sido coroada pelo New York Times, em 2007, como capital mundial dos bares e, mais recentemente, reconhecida como Cidade Criativa da Gastronomia pela Unesco, o que sustenta a boemia mineira é sua dimensão imaterial. Ao destacar os chamados “butecos de dono”, o Comida di Buteco ajuda a consolidar certos sentidos sobre a essência da butecagem. O dono no balcão, a comida com gosto de casa, a conversa atravessando a calçada: mais do que critérios de seleção, esses elementos funcionam como marcadores simbólicos, ativando memórias coletivas e preservando formas de sociabilidade diante da precarização dos espaços públicos e do ritmo acelerado da vida urbana.
Nesse cenário, o caso de Washington, dono do Já Tô Inno, no Barreiro, exemplifica um dos caminhos de impacto do concurso. Quando recebeu a visita de Maria Eulália, cofundadora do Comida di Buteco, em um momento delicado da trajetória do bar, a kafta servida naquele dia garantiu sua entrada na edição seguinte. A vitória veio não só naquele ano, com a receita de filé mignon suíno batizada de Jeitinho Mineiro, mas também nos dois anos seguintes. Com a visibilidade, o bar atraiu novos públicos, superou um período crítico de gestão e contribuiu com a inserção do Barreiro no radar gastronômico da cidade. E mais do que o sucesso comercial, estavam em disputa as condições de manter viva uma experiência que já existia para além reconhecimento institucional: um modo de fazer buteco que costura afeto e território.
Simultaneamente, por mais que emblemáticas, histórias como a de Washington não contemplam toda a complexidade do cenário. O concurso opera em fronteiras ambíguas: ao mesmo tempo em que amplia a visibilidade de estabelecimentos que historicamente sustentam a cultura de butecos de BH, também precisa dialogar com lógicas de mercado e patrocínio que, muitas vezes, vão na contramão da essência de familiaridade e tradição dessa mesma cultura. A força simbólica do evento também está nessa tensão: sua existência não garante a preservação do movimento, mas pode contribuir para evidenciar sua importância.
Além das transformações materiais, o imaginário que cerca a cultura de buteco também se reinventa com o tempo. Se antes esses estabelecimentos eram fortemente associados à presença masculina, essa ideia já não contempla a pluralidade da ocupação desses espaços. As mulheres, que sempre estiveram à frente dos butecos nas cozinhas, no cuidado cotidiano e na sustentação das rotinas, agora protagonizam também a clientela e ganham nova visibilidade na forma como essa cultura é narrada. A manifestação dessa mudança é evidente, inclusive, nos nomes dos bares – que cada vez mais carregam também o nome de suas donas. Ao movimentar a ordem de visibilidade dos estabelecimentos da cidade, o Comida di Buteco também contribui com o resgate de trajetórias antes deixadas à margem.
Redatores auxiliares: Isis França e Luiza Guimarães
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