O Folclore através da tela
- João Pedro Ribeiro
- 22 de ago.
- 7 min de leitura
Contar histórias sobre o nosso povo faz com que não esqueçamos de onde viemos e quem nós somos
Última atualização: 21/08/2025
Por: Pedro Naves e Rafael Silva

Sente-se. Vou lhe contar uma história…
É dessa maneira que muitos de nós obtivemos nosso primeiro contato com lendas do nosso folclore nacional. Seja em nossas residências, em viagens com nossos parentes ou na escola, a tradição de se contar histórias ainda resiste e nos ensina sobre o nosso povo de diferentes modos. No mês de agosto, costumeiramente celebramos muitos desses ditos populares e relembramos a sua importância para a nossa formação.
Fabular não é só brincadeira de criança!
A palavra folclore tem origem inglesa: é uma junção das palavras folk (povo) e lore (saber, conhecimento). Corriqueiramente, a utilizamos para falar sobre as diferentes expressões culturais brasileiras, festas, cantigas e lendas que foram criadas em diferentes momentos e perpassam gerações.
Passamos 11 meses na expectativa para que se chegue o mês de junho, período em que tiramos o nosso colete xadrez do armário, colocamos o nosso chapéu de palha e saímos em direção a uma festa junina. Lá, damos de cara com comidas típicas, um bom forró como som ambiente e a oportunidade de encontrar um par. Afinal, a quadrilha vai começar!
No decorrer da infância, diferentes cantigas nos são passadas. Elas geralmente ditam o ritmo de gincanas e brincadeiras. As músicas vão desde uma borboleta que está na cozinha, prestes a entregar um chocolate para sua madrinha, a uma barata que jura porque jura que tem sete saias de filó.
Essas canções funcionam como uma importante ferramenta pedagógica, pois a utilização dessas dinâmicas como método de socialização é essencial na primeira infância. Além disso, muito provavelmente será o contexto em que teremos o nosso primeiro contato com as lendas do nosso folclore.
Diante de um mundo tão vasto e tão novo, somos marcados por essas histórias e rituais. O contato inédito no início da vida, em conjunto com a primeira conexão com o outro, alimenta uma diversidade de sentimentos. Ao mesmo tempo em que amamos os personagens, não os entendemos direito – e muitas vezes não sabemos porque.
Os sentimentos aguçados dizem respeito a nós, que estamos em conexão com a obra, mas também dizem sobre aqueles que já entendem como os contos podem nos impactar. Só relembrar o nome desses personagens já pode gerar um arrepio na espinha. Afinal, quem nunca ficou com medo de não conseguir pegar no sono, enquanto uma bruxa com características de jacaré estava à espreita para lhe papar na primeira oportunidade?
As histórias introduzem parte da nossa cultura mas também nos introduzem com maior ênfase ao sentimento do medo. Em certos aspectos, elas podem significar apenas um rito de todas as noites compartilhado entre pais e filhos, mas em algum ponto as músicas também servem como uma ferramenta de controle. Em uma fase da vida em que o lúdico e o real não estão tão delimitados – e ainda existe uma certa magia em torno de aspectos desconhecidos da vida –, surgem essas figuras misteriosas que ora instigam o imaginário infantil, ora aterrorizam.
Quando a imaginação toma forma
Esse universo de lendas e de sentimentos, moldado pelas histórias que nos são contadas na infância, expande-se para além do ambiente familiar. As lendas do folclore brasileiro não fazem só sucesso na hora de dormir das crianças. Com o passar do tempo, o imaginário popular foi adaptado para a tela, e suas diferentes versões dominam a produção de conteúdo audiovisual há anos. A TV MultiRio, iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro, adaptou, entre 2004 e 2010, algumas dessas lendas para uma série de curtas que contam a história de algumas figuras emblemáticas. Juro que Vi, nome que faz trocadilho com a cultura oral do folclore, conta a origem de Iara, Curupira, Boto, Saci e Matinta Perera. Alinhado com a visão da empresa de usar a educação como meio de transformar, esses curtas representam o início de um imaginário que vem a ser desenvolvido mais à frente da vida.

Aqui, a principal característica presente é a alegria de se fabular. Em O Boto, dirigido por Humberto Avelar, embarcamos em uma pequena jangada, em que uma moça se mostra encantada com um boto cor de rosa que, mais tarde, se mostraria um ótimo dançarino na pista de dança mais badalada da cidade. A adaptação dessa história tão conhecida não cria terror em torno dessa figura. Pelo contrário, a mística solar sob esse homem é o que atrai a atenção nessa história. No curta, conseguimos reconhecer um dos espectros das representações folclóricas. Se, de um lado, temos o terror, que desperta o medo, também temos a graça de se imaginar.
Em um momento, que já pode ser considerado intermediário na introdução ao folclore, encontramos séries de TV como O Sítio do Picapau Amarelo (2001-2007) e Castelo Rá-Tim-Bum (1994-1997). Na segunda, que surge e se consolida como uma produção infantil na década de 90, mas se consolida no imaginário do brasileiro para sempre, há a presença de diversos seres mágicos, animais falantes, objetos animados e figuras do nosso folclore. A cultura popular é exaltada de forma recorrente, principalmente através das narrativas que nos são contadas.
Uma das figuras que mais se destaca no decorrer da série é a Caipora Régia – ou apenas Rê, para os íntimos. Figura marcante na cultura de lendas brasileiras, ela participa da minissérie infantojuvenil. O método de invocá-la é muito simples: só é necessário assobiar. Assim, ela logo surge no castelo, produz uma algazarra e conta histórias sobre as aventuras dos indígenas Poranga e Porunga nas matas brasileiras.

Geralmente contada por terceiros como uma das protetoras das nossas florestas, que se conslidou no imaginário popular com seus êxitos recorrentes alcançados contra invasores da nossa flora, nesse momento toma o controle narrativa. Numa deliciosa inversão da contação de histórias, é ela que conta sobre tradições e aventuras nas matas brasileiras.
Ainda no campo das séries, em O Sítio do Picapau Amarelo (criação de Monteiro Lobato, na adaptação de 2001 da TV Globo) a responsável por contar as histórias é a dona do sítio e avó de Narizinho e Pedrinho, Dona Benta. Ela é responsável por introduzir a essas crianças diversas histórias sobre as figuras folclóricas. A senhora, no entanto, não se limita ao imaginário brasileiro e introduz aos netos contos que são marcantes em todo o mundo. Nos episódios que adaptam o livro “O Picapau Amarelo”, por exemplo, é introduzida a lenda do excêntrico Dom Quixote, que posteriormente aparece no sítio e interage com figuras da nossa cultura.
Contudo, Dona Benta não se apresenta sozinha na fabulação. Tia Nastácia e Tio Barnabé, em certos momentos, também são responsáveis por guiar as crianças pelo mundo de fantasia. Um exemplo disso ocorre no episódio “O Saci”, quando Nastácia aconselha Pedrinho a não mexer com esses seres travessos, enquanto Barnabé ensina ao menino como capturar a criatura. No decorrer da trama, ocorre uma subversão dessas figuras, quando o Saci e a Cuca são os responsáveis por ensinar aos espectadores e aos personagens sobre aquela história. Aqui nos aproximamos mais do Castelo Rá-Tim-Bum, quando figuras que já estão presentes na natureza, que muitas vezes fazem dela seu lar, são responsáveis por mostrar, respeitosamente, esse ambiente que ainda não conhecemos.

Essas figuras se apresentam como muletas narrativas, mas desenvolvem uma metalinguagem nessas produções. Dentro do Sítio do Picapau Amarelo, histórias são passadas de avós para netos, de tios para sobrinhos – assim como, na realidade, familiares compartilham essas histórias através de leituras ou cantos para as crianças ao seu redor.
O formato de exibição também se desenvolve de uma maneira metalinguística. Apesar da adaptação da TV Globo possuir 1159 episódios, eles contam apenas 61 histórias. Isso porque o que era exibido durante uma ou até duas semanas fazia parte de uma mesma narrativa. Pode-se fazer uma analogia de como se fosse ler um livro na hora de dormir: os pais leem um pouco para as crianças que, mesmo quando dá a hora de descansar, querem mais. Assim, aguardam ansiosamente o próximo dia para a continuação.
Mudar também é preservar a tradição
Toda essa estrutura contribuiu para que a série de TV permanecesse no imaginário das crianças que cresceram com ela. Para passar a tradição adiante, o formato audiovisual procura sua própria maneira de cativar o interesse e demonstrar identificação. E isso não é novidade alguma: as histórias de Monteiro Lobato, por exemplo, são adaptadas há tempos para o cinema e para a televisão. O Saci (1953) , dirigido por Rodolfo Nanni, traz lá na década de 50 uma versão da história que inspira o episódio da série de 2001.
Entre semelhanças e diferenças, a obra permite observar como o folclore sobrevive na cultura brasileira durante muito tempo, o que já acontecia quando a tradição era apenas oral, por cantigas, mas se intensificou com a presença no audiovisual. Como reflexo da mudança de consumo do mundo, essa tranformação foi uma maneira encontrada para que esse imaginário continuasse em trânsito e para que novos públicos fossem cativados.
A linguagem se transforma e prospera. Não à toa, em alguns momentos, as obras folclóricas incorporam elementos do gênero do terror, buscando interagir com uma parcela específica do público. Às vezes, eles são sucintos como no caso de O Saci (1953), que utiliza das sombras e de figuras misteriosas, ou até na série mais recente Cidade Invisível (2021-2023), que transforma as lendas em um ambiente totalmente voltado ao suspense. O folclore não se consolida como um gênero, pelo contrário – ele é tão amplo que às vezes não é tão fácil catalogá-lo.
A grande diversidade de povos no Brasil permite que muitas narrativas possam ser produzidas. No entanto, muitas dessas histórias não são documentadas através de escritos e ficam restritas à oralidade. Os ensinamentos são passados de geração para geração, a partir de relatos das figuras mais velhas desses povos. Já parou para pensar na quantidade de mitos ou lendas folclóricas que não temos contato? O audiovisual é importante, mas cultura, sem a tradição oral, não floresce. Ele pode democratizar um pouco o acesso, mas esses acessos à produção também demarcam locais de privilégios e apagamentos.
Mas acho que já deu a hora de dormir! Você vai poder pensar um pouco sobre isso. O resto da história fica para outro dia!
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