Preta: Do nascimento aos discos, tudo se revela como contracultura
- Thiago Pimenta
- 22 de jul.
- 3 min de leitura
Preta é sim nome de gente.
Por: Thiago Daniel
Última Atualização: 21/07/2025

Toda a saga de Preta Gil pode ser compreendida a partir de sua origem: um confronto burocrático que se revelou como uma profecia. Em 1974, ao chegar ao cartório para registrar sua filha, Gilberto Gil foi confrontado por uma sentença que ecoava o racismo estrutural do país: "Preta não é nome de gente". O tabelião recusou-se a aceitar o nome. A resposta de Gil foi uma pergunta: "Mas por que não pode Preta, se tem Branca, Bianca, Rosa, Clara, ...?". A resistência do pai forçou um acordo que, inadvertidamente, selou o destino de sua filha. O funcionário cedeu, mas com uma condição que revelava a hegemonia religiosa e cultural que ele representava: o nome "Preta" só seria permitido se acompanhado de um nome católico. Assim nasceu Preta Maria Gadelha Gil Moreira, nome que encapsulou sua dupla missão: a afirmação desafiadora da negritude contra um sistema que a nega e a encarnação de uma força meio que matriarcal, acolhedora e poderosa dentro da cultura brasileira (representada pelo Maria).
Sua carreira começou fora dos palcos, mais precisamente em agências de publicidade, tornando-se uma bem-sucedida produtora de videoclipes para artistas de grande calibre, como Ivete Sangalo, Ana Carolina e Marina Lima. Como uma insider da música e carregando um legado cultural tão importante em seu sobrenome, Preta Gil lançou, em 2003, seu primeiro álbum de estúdio, o Prêt-à-porter. Mais do que um projeto musical, foi um manifesto. A capa, concebida pela fotógrafa Vânia Toledo – que já fotografou outros grandes ícones da música brasileira – trazia Preta completamente nua, em uma imagem que ela descreveria como um símbolo de "renascimento" para a música.
Vale lembrar que, em 2003, o cenário político-cultural do Brasil era bem específico. A virada do milênio e o início do governo Lula foram uma porta de entrada para uma revolução cultural na qual Preta atuou como uma das peças principais. Ainda, a promulgação da Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas, foi um marco importante e sinalizava uma maior atenção às questões de identidade e representatividade racial, trazendo para os holofotes discussões sobre corpo, raça e sexualidade. A capa de seu álbum recém lançado certamente significava uma virada de chave na mentalidade e no vocabulário do povo brasileiro. As músicas contidas no disco, que representavam uma fusão de samba-funk e MPB, produzidas com um time de talentos como Donatinho e Pedro Baby, quase se tornaram um detalhe. A imagem da Preta nua falou mais alto. O single "Sinais de Fogo", uma composição de Ana Carolina, é um verdadeiro sucesso dos anos 2000 e tornou-se um escudo, uma canção de qualidade inegável que a protegeu parcialmente da avalanche de críticas, mas que não foi suficiente para evitar a tempestade. A crítica que se seguiu não era apenas artística, era um ataque triplo, abertamente misógino, racista e gordofóbico. Críticos de veículos importantes usaram termos como "baixaria", "apelação e mau gosto", desmoralizando a artista com base em seu corpo e em sua audácia.
Desde então, Preta Gil apresentou-se com muita luta contra o preconceito no Brasil. A militância, para ela, não era um projeto paralelo ou uma bandeira a ser levantada em ocasiões especiais, era o tecido de sua existência pública. A atitude desafiadora da capa de 2003 amadureceu e se transformou em uma plataforma política consciente, articulada e, acima de tudo, interseccional. Ela compreendeu que as opressões que enfrentava não eram isoladas, mas sim pertencentes a uma rede estrutural que sempre marginaliza existências dissidentes. Preta, com seu primeiro álbum e com sua trajetória de vida, moldou o imaginário coletivo e contribuiu para o avanço das lutas nas pautas raciais, de sexualidade e de corpo feminino. Em uma época marcada pela desinformação e pelo preconceito, ela foi e continuou sendo luz.
Neste último domingo, infelizmente, em meio a um tratamento experimental contra o câncer colorretal que enfrentava com uma coragem feroz e pública desde o início de 2023, Preta faleceu nos Estados Unidos. A transparência com que documentou sua doença, as cirurgias, a quimioterapia, a dor, a esperança, não foi um ato de sofrimento passivo, mas uma última e poderosa declaração de princípios, todos consistentes com a obra de sua vida. Ela se recusou a permitir que o estigma da doença a silenciasse, assim como se recusou a ser silenciada por qualquer outro preconceito ao longo de sua carreira. Que seu legado seja eterno.
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