A cultura de Brechós
- Revista Curió
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Atualizado: há 5 dias
Moda circular como um desvio à lógica do descarte
Por: Laura Portugal e Thiago Daniel
Última Atualização: 04/08/2025

Os Brechós no Brasil
A ascensão dos brechós no Brasil não pode ser atribuída a um único fator. Embora a busca por uma moda autêntica e seletiva seja plausível, é fato que a questão econômica representa um pilar importantíssimo para a consolidação da moda circular no país. O crescimento do mercado “de segunda mão” aparece em registros desde a abertura da “Casa do Belchior”, no século XIX, no Rio de Janeiro. Desde então, os brechós apresentaram notável crescimento no cotidiano brasileiro. Segundo dados do SEBRAE Minas, que orientam essa análise, somente entre 2010 e 2015 houve um aumento de 210% em números de brechós oficialmente registrados no país. A recessão econômica, apesar de influente, não explica totalmente esse fenômeno, o que leva a outras investigações: a indústria da moda é uma das mais poluentes do planeta, sendo responsável por um consumo anual de 93 trilhões de litros de água e por até 10% das emissões globais de carbono de acordo com levantamentos do FIEP. Diante desses números não tão agradáveis, o brechó surge como uma alternativa que se enquadra dentro da economia circular, estendendo o ciclo de vida das peças e combatendo a cultura do descarte promovida pelo fast fashion.
Ainda refletindo sobre a popularização desse mercado no Brasil, a própria palavra "brechó" foi ressignificada ao longo do tempo. Sua origem remete aos tempos da Casa do Belchior, cujos estabelecimentos de venda de artigos usados se popularizaram e tiveram o nome adaptado pela fala popular. Por muito tempo, o termo carregava estigmas associados a produtos velhos, sujos ou até mesmo carregados da energia negativa do antigo dono, sendo rotulado como uma “roupa de morto”. Hoje, o brechó deixou de ser um sinônimo de velharia para se tornar um emblema de estilo, exclusividade e responsabilidade ambiental. Belo Horizonte se consolidou como um epicentro dessa cultura: a cidade apresenta mais de 529 brechós registrados oficialmente na capital e um ecossistema que chega a quase 2.650 negócios em Minas Gerais.
Longe de ser um cenário homogêneo, os brechós de BH formam um mosaico que espelha a própria complexidade urbana da cidade, com diferentes modos de garimpar que se distribuem por bairros como Savassi, Serra, Santa Inês, Lourdes, o revitalizado Mercado Novo e o Aglomerado da Serra. Para pensar sobre o cenário local e aprofundar as práticas de garimpo, a Revista Curió conversou com Frederico Pires, dono da p.i.rei, espaço criativo e brechó localizado na Praça Raul Soares, 269. Fred tem 29 anos, trabalha com brechó há quase uma década e, com seu parceiro Renato Santos, conduzia a Garimpo.101, que, quando ativo, chegou a administrar mais de 21 mil peças de vestuário.
“Nasci em Ipatinga, no interior de Minas e vim para Belo Horizonte para estudar Geologia, mas quando cheguei aqui, caí em vários subempregos pela cidade. Chegou um momento em que eu não queria isso para minha vida, eu não queria trabalhar mais para os outros. Encontrei Renato em uma república e nós começamos nosso primeiro projeto, o Garimpo.101. A gente sempre garimpou muito, nós tínhamos muita roupa, então a gente juntou tudo e começamos a vender. A gente ficava pertinho do Mercado Central e, como era um prédio residencial, a gente inclusive foi denunciado para a Prefeitura e fomos expulsos… A gente ficou um tempo procurando um novo lugar e encontramos o Acervo Discos (Raul Soares 269). Eu cheguei na galera que trabalhava aqui embaixo e disse ‘Eu não posso colocar uma arara aqui não? Acho que combina muito com discos’. Eles gostaram da ideia e deu um movimento muito doido, a galera comprou roupa, comprou discos, foi um sucesso. A Garimpo, então, durou 4 anos nesse espaço (8 desde nosso apartamento) e movimentou legal a cidade.”
O avesso das tendências
Enquanto o mercado da moda responde com agilidade à velocidade das redes sociais, os brechós operam em outra lógica. O avanço de plataformas baseadas na abundância de conteúdo, como Instagram e TikTok, impulsionou não apenas o surgimento de tendências pontuais de peças, mas a consolidação de estéticas inteiras — como clean girl, old money ou loud luxury — que se alternam em ciclos cada vez mais breves de popularidade e descarte. Muitas vezes, essas propostas se contradizem entre si, mas seguem sustentadas por uma mesma lógica de consumo rápido, que estimula a compra impulsiva e diminui a durabilidade das peças. Acompanhando – ou ditando – este ritmo, as grandes marcas lançam coleções cada vez menos atentas à conservação, confeccionadas para durar pouco e atender apenas a demandas momentâneas.
Em paralelo, os brechós propõem uma relação diferente com a roupa, com o consumo e, sobretudo, com a construção de um estilo próprio como manifestação criativa. Baseados no reaproveitamento e na valorização do que já existe, eles deslocam o olhar do consumo imediato para um processo mais inventivo, sustentado pela experimentação, por combinações que não vêm prontas e pela revalorização de peças que escapam da lógica da vitrine. O ato de garimpar exige tempo, atenção e uma escuta diferente do corpo: em vez de se adaptar a um modelo previamente definido, consumir em brechós demanda uma presença imaginativa para habitar o que Fred Pires chamou de um real contrafluxo às tendências:
“Se o mercado diz que a moda é a peça ‘x’ ou ‘y’, eu não vou achar essas peças — vou achar o ‘z’, algo completamente diferente, atemporal, que alguém vai gostar não por estar na moda, mas pela experiência de vestir e pensar: ‘é, gostei!’ São peças únicas, você não vai sair e encontrar mais ninguém usando igual, como acontece com o fast fashion. Não tem a menor possibilidade de eu mudar todo o meu projeto para abraçar a estética do momento, deixar tudo ‘clean’ — jamais. E acho que isso é justamente uma oportunidade de apresentar para as pessoas, seja na loja ou nas redes, outras possibilidades que essas estéticas prontas não mostram.”
Modos de ocupar
O crescimento da visibilidade da moda circular tem possibilitado o surgimento de novos espaços na cidade e favorecido a construção de um ecossistema colaborativo, em que diferentes frentes, práticas e estéticas se articulam. Depois de anos à frente do Garimpo.101, que funcionava no segundo andar de um prédio na Praça Raul Soares, Fred agora dá início a um novo projeto no mesmo endereço: a p.i.rei, espaço que amplia o olhar sobre o vestir ao unir brechó, confecção de peças próprias a partir de roupas antigas e ateliê aberto a diferentes manifestações artísticas. A nova proposta se soma à efervescência cultural da região, logo acima da tradicional loja de discos que ocupa o térreo do prédio.
A inauguração da p.i.rei acontece no primeiro sábado de agosto com uma festa aberta à cidade. Mais do que apresentar as peças e a proposta do espaço, a abertura pretende proporcionar uma atmosfera de troca entre artistas, criativos e pessoas interessadas em moda circular, reforçando a dimensão coletiva que atravessa o projeto desde sua concepção.
Lindo demais ver essa comunidade da moda de segunda mão ganhando tanta força em BH. Amei o texto e muito sucesso pro Pirei!