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Um brinde aos que ousaram sonhar e se questionar

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    Revista Curió
  • 31 de jul.
  • 9 min de leitura

Atualizado: 1 de ago.

A Revista Curió presta uma pequena homenagem ao mestre David Lynch


Por: João Pedro Ribeiro e Ludmila Cunha

Última atualização: 31/07/2025


GQ/Divulgação
GQ/Divulgação

O ano de 2025 ficou marcado pela despedida do cineasta David Lynch. No entanto, sua memória será carregada por todos aqueles que se aconchegam no incômodo trazido por sua arte. A herança deixada por ele aos amantes de cinema perdura e encontra mais apreciadores a cada dia, quase que numa homenagem a sua obra: o fim de algo, com frequência, é apenas o seu começo.


Se você estiver buscando linearidade e ordem, a filmografia de Lynch poderá soar como um amontoado sem sentido de besteiras. Para experienciar seus audiovisuais, é preciso se desprender das amarras da busca pelo contínuo, porque seu condutor aperfeiçoou, ao longo de muitos anos, a beleza da abstração. Com ele, o mundo aprendeu que a ausência de explicação é uma explicação por si só; o incômodo gerado pela arte nada mais é do que uma instigação às interpretações individuais. Acima de tudo, quem está deste lado da tela tem a certeza de que jamais será subestimado.


Isso não quer dizer que embarcar numa maratona de filmes de David Lynch será uma experiência frustrante. Aqueles que se propõem a fazê-lo terão tantas dúvidas quanto sentimentos, ambos em grandes quantidades – mas isso é produto do respeito que o diretor demonstra ter pelo seu público. Os espectadores são levados aos extremos dos seus sentidos, aos limites de sua imaginação e ao esplendor de sua capacidade de refletir. Os instrumentos para isso são muitos e serão melhor demonstrados à frente, mas a finalidade parece ser sempre a mesma: desafiar-nos a duvidar de qualquer resposta absoluta


Entre sonhos e pesadelos


Costumamos ficar insatisfeitos ao sair de uma sala de cinema quando sentimos que não entendemos um filme. Será que foi culpa do diretor? Do roteiro? Ou pior, será que a culpa foi minha? Ao terminar uma obra de David Lynch, sabemos tanto sobre ela quanto quando começamos. Entretanto, ao contrário do usual, quando se trata do cineasta estadunidense, esta é, sempre, uma sensação prazerosa.


Sonhar é parte indispensável do ser humano. Cada um tem uma relação própria com o subconsciente, mas todos experienciam esse constante levantar de dúvidas e buscar por respostas. Entre sonhos bons ou ruins, silenciosos ou barulhentos, vemos o que chamamos de “realidade” adquirir novas formas, cores e significados.


David Lynch é um sonhador, mas não apenas isso. Através de seus filmes, ele é alguém que nos convoca a sonhar junto com ele. Apesar de ter uma filmografia bastante distinta entre si – tanto em termos de conteúdo quanto de forma –, um de seus maiores legados é a capacidade de explorar o onírico em tela, convocando o espectador a construir a narrativa ao invés de apenas entregá-la pronta.


Em Cidade dos Sonhos (2001), um dos longas mais aclamados do diretor, essa perspectiva é levada quase ao pé da letra. Em Los Angeles, uma aspirante a atriz (Naomi Watts) e uma mulher que sofre de amnésia após um acidente de carro (Laura Harring) protagonizam uma trama em que sonhar transita, sem anúncio, entre a salvação e a perdição do ser humano.


Naomi Watts em Cidade dos Sonhos - Mulholland Drive/Reprodução
Naomi Watts em Cidade dos Sonhos - Mulholland Drive/Reprodução

Essa é uma excelente obra para quem deseja ser introduzido ao estilo lynchiano, uma vez que materializa grande parte das questões trazidas aqui de uma forma bem palpável (mas palpável em termos de David Lynch, não se esqueça). Em um diálogo com a própria capacidade do cinema de nos fazer sonhar, Mulholland Drive (título original) é uma daquelas histórias que instigam o espectador a buscar por respostas, deixando-o de queixo caído ao perceber que algumas delas estavam debaixo do próprio nariz durante todo o tempo. Simultaneamente, diversas questões são deixadas “em aberto”, de forma que o público possa fazer as suas próprias interpretações sobre elas.


“Acho que fragmentos são bem interessantes. Você pode sonhar com o resto. A partir disso, você se torna um participante...”, disse Lynch para o livro The Essential Wrapped in Plastic.


Por mais que a busca por respostas seja um forte mobilizador para a curiosidade humana, elas nem sempre chegam por meios convencionais – inclusive, por  vezes, nunca chegam. Várias das histórias de Lynch contam com detetives como personagens centrais, mas Lynch sempre deixou claro que, em seus filmes, o verdadeiro investigador é o público.


Essa metáfora se materializa em Twin Peaks (1990–1991), seriado de televisão escrito por Lynch, em parceria com Mark Frost, que influenciou significativamente a forma televisiva de produzir dramas e mistérios sobrenaturais que viriam posteriormente. Em suas duas primeiras temporadas, o público é apresentado à supostamente pacata cidade de Twin Peaks após a morte da adolescente Laura Palmer (Sheryl Lee) e, junto do Agente Especial Dale Cooper (Kyle MacLachlan), é guiado a encontrar as pistas que solucionarão o caso. O que, num primeiro momento, parece ser um enredo policial de mistério clássico, começa a mostrar sinais de surrealismo, fazendo com que as tão buscadas respostas passem pelo filtro de sonhos, visões e revelações transcendentais.


 Sheryl Lee e Kyle MacLachlan em Twin Peaks: Fire Walk With Me/Reprodução
 Sheryl Lee e Kyle MacLachlan em Twin Peaks: Fire Walk With Me/Reprodução

Interpretações frequentes afirmam que cada elemento abstrato e surreal das obras lynchianas nos direciona a alguma interpretação ou prelúdio do que está por vir. O próprio Lynch parece brincar com isso nos primeiros minutos da prequela Twin Peaks: Fire Walk with Me (1992), quando o Agente Especial Chet Desmond (Chris Isaak) destrincha o significado de cada movimento de uma mulher misteriosa para explicar as circunstâncias e dificuldades da investigação que estava prestes a iniciar.


Entretanto, essa não é a regra – nem algo encorajado pelo diretor. Se formos desenhar um certo modelo para o estilo lynchiano, é possível destacar que suas obras são compostas por jogos complexos de fragmentação, em que as tramas são conduzidas diante de lacunas de informação, e abstração, em que a expressão de ideias e conceitos se dão através da imagem e do som ao invés das palavras.


Como David Lynch sonha conosco?


Nos parece que um dos principais instrumentos para construir fragmentações e abstrações seja a edição. Para que estejamos sempre imersos no mistério, na beira dos nossos assentos buscando por qualquer informação, a edição das obras de Lynch funciona como um artifício de controle do nosso senso de tempo como espectador, fazendo com que o ritmo da história dite a atmosfera e nossos sentimentos. 


É através desse artifício que transitamos entre realidade e fantasia em A Estrada Perdida (1997). Aliás, essa obra pode ser vista como um leque de características do diretor; nela, também é observável a clássica dualidade dos seus personagens, que por vezes assumem mais de uma identidade ou personalidade, sendo obrigados a encarar uma segunda face de si mesmos, quase sempre mais obscura. 


Bill Pullman em A Estrada Perdida - Lost Highway/Reprodução
Bill Pullman em A Estrada Perdida - Lost Highway/Reprodução

Esse “mundo de opostos” também se estende a outros elementos das histórias, como na dicotomia entre um subúrbio americano diurno e ambientes noturnos de ruas misteriosas e apartamentos  apertados em Veludo Azul (1986). Ou ainda, a mais simples das divisões: luz e sombra. Quando Fred Madison (Bill Pullman) imerge no corredor escuro de sua casa (quase) assombrada em Lost Highway (título original da obra), é impossível não sentir apreensão pelo o que está por vir. 


Essa atmosfera de apreensão decorre, em partes, do fato de não termos certeza sobre o que exatamente está diante dos nossos olhos – seja por nitidez ou obscuridade. O cineasta já vocalizou publicamente sua preferência por câmeras mais antigas, que não tenham tanta clareza de imagem, porque, segundo ele, “algumas vezes, num enquadramento, se existe alguma dúvida sobre o que você está vendo, ou sobre algum canto escuro, a mente pode começar a sonhar. Se tudo estiver cristalino na imagem, ela será aquilo. Ela será somente aquilo”. E ao tratar especificamente das sombras, ou da cor preta como ausência de iluminação, Lynch disse em entrevista a Chris Rodley: “O preto tem profundidade. É como um pequeno egresso. Você entra nele e começa a ver as coisas de que você tem medo. Que você ama. E se torna um sonho.” 


E não é só o preto que possui protagonismo nas obras. David se aproveita de paletas vibrantes para contrastar cores e exprimir humores ao público de forma ímpar - momentos em que a iluminação toma lugar da sombra. O vermelho das flores que se contrapõem ao céu azul dos jardins de Blue Velvet (título original), é o mesmo vermelho das cortinas do reino dos sonhos de Twin Peaks, frequentemente visitado por Cooper em seus momentos de maior ligação com o subconsciente. 


Brincando com as cores, formas e espaços vazios, o diretor faz a construção de frames que instigam a curiosidade de quem assiste. Cada imagem se assemelha a uma pintura em movimento e, em combinação com brilhantes atuações e sonoplastia, criam o ambiente necessário para chocar, emocionar ou entreter.


Surrealismo em cena


O impacto da pintura na filmografia de Lynch não é mero acaso. Antes de se tornar cineasta, estudou artes visuais em diversas instituições, incluindo na Academia de Belas Artes da Pensilvânia, onde faria a transição para produzir curtas posteriormente. Se a década de 20 concentrou o auge do movimento surrealista nas telas, dedicado a explorar o inconsciente, foi em 1977 que a telona conheceu uma das suas maiores representações com o lançamento de Eraserhead, o primeiro longa-metragem do diretor.


Na trama, a vida de Henry Spencer (Jack Nance) toma proporções inimagináveis quando sua inconveniente namorada dá a luz a um filho extremamente fora dos padrões. Até pode parecer a descrição de um filme de Sessão da Tarde, mas acredite: qualquer vínculo com a nossa realidade objetiva para por aqui. 


Num show de peculiaridades, Eraserhead utiliza tudo – exceto a normalidade – para tirar o espectador da sua zona de conforto. Entre sons distorcidos e imagens perturbadoras, além de uma estrutura narrativa completamente não convencional, o filme tenta fazer o público sentir a angústia e ansiedade vividos por Henry de uma maneira jamais pensada anteriormente.


O bebê de Henry - Eraserhead/Reprodução
O bebê de Henry - Eraserhead/Reprodução

Essa é uma das obras que talvez melhor se encaixe no que foi dito na abertura deste texto. Qualquer busca por ordenamento ou conexões diretas com o cotidiano é completamente em vão. Justamente por isso que nos atrevemos a dizer que Eraserhead é uma das maiores aproximações da pintura com o cinema, já que Lynch realiza uma quase tentativa de trazer movimento ao surrealismo.


Essa é uma das poucas oportunidades no cinema em que o espectador pode (é praticamente obrigado, na verdade) priorizar o sentir no lugar do pensar. Sem dúvidas, o pouco convencionalismo da obra tende a afastar parte do público; no entanto, mesmo que seja para não gostar, Eraserhead é uma daquelas experiências que marcam o espectador permanentemente.


Nesse amontoado de abstrações, diversos temas interessantes são abordados. Dentre eles, a repressão sexual e a ansiedade do mundo industrial são acionados numa constante disputa entre escapismo e aceitação da realidade. As diversas metáforas visuais, acompanhadas de uma trilha sonora extremamente sensorial, realizam essas abordagens de formas extremamente difíceis de se colocar em palavras – algo que se tornaria marca registrada de Lynch dali para frente.


Mesmo nesse mosaico de temáticas, o medo da paternidade aparenta ser o maior destaque da história. A partir do momento em que o bebê (propositalmente) desfigurado entra em cena, a vida de Henry se torna uma alegoria angustiante sobre a perda da liberdade individual e o terror do desconhecido que acompanha a criação de uma nova vida. Sem sombra de dúvidas, o nascimento de sua filha (Jennifer Lynch) ter ocorrido alguns poucos anos antes colabora para essa tese, e nos instiga a teorizar: quais outros sentimentos de sua vida pessoal o diretor deixou influenciar suas obras?


Se a abstração da arte for comumente responsável por causar emoções a quem se propõe a refletir sobre ela, nada seria mais lynchiano do que também fazer o caminho reverso. Numa via de mão dupla em que somos tomados por emoções, a arte parece ser, para David, um canal de comunicação sobre seus próprios receios. É nessa perspectiva que começamos a enxergar a peculiar forma de retratar matrimônios e outras relações amorosas – sempre com desconfianças e traições –, ou como seus personagens lidam com as próprias frustrações, inseguranças e ciúmes dentro de interações sociais.


Cada um de seus trabalhos ganha uma nova camada de complexidade quando os assistimos por essa lente, o que de maneira alguma é obrigatório. O hermetismo inerente a eles já será capaz de manter sua mente ocupada por muitos dias, se você permitir.


Algumas cortinas vermelhas se fecham para que outras possam abrir!


Certa vez, Lynch disse: “mantenha o olho no donut, não no buraco”. Além de representar um dos alimentos mais exageradamente consumidos pelos policiais de Twin Peaks, a famosa rosquinha pode ser vista como uma representação da arte nessa frase. Essa metáfora extremamente norte-americana traduz um pouco da experiência lynchiana: por mais que lacunas existam, temos muito a aproveitar do surreal se abrirmos nosso coração para ele.


Para Lynch, um mistério é como um ímã. Sempre que há algo desconhecido, ele exerce uma atração. Quando você só vê uma parte, é ainda mais forte do que ver o todo.


Rolling Stone/Divulgação
Rolling Stone/Divulgação

David não pode mais ser questionado sobre o significado de alguma cena específica ou sobre qual o motivo do seu apreço por patos e tortas. No entanto, através de sua obra, ele não poderia estar mais vivo. Numa indústria repleta de saturações, o diretor nos ensina que ainda somos capazes de sentir, mesmo que isso signifique suspender nossa racionalidade por um momento. Acima de tudo, somos eternos sonhadores.


Diane, sete da noite, 31 de julho. Entrando na cidade de Twin Peaks para nunca mais sair.


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