Quando o terror fala português
- Revista Curió
- 30 de out.
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Entre lendas regionais e críticas sociais, brasileiros consolidam cinema de terror autêntico, criativo e cada vez mais reconhecido dentro e fora do país
Por: Ana Clara Moreira e João Henrique Nascimento
Última atualização: 29/10/2025

Você se lembra onde viu, pela primeira vez, uma história de Halloween? Embora não seja possível afirmar, as chances são grandes de ter sido em um filme ou ou série internacional. A origem do costume de sair às ruas com fantasias em busca de gostosuras ou travessuras tem explicações diversas, mas o fato é que as produções audiovisuais – especialmente o cinema! – foram e ainda são determinantes para difundir a ideia de uma noite que muitas vezes começa como uma brincadeira inocente, mas costuma seguir por caminhos aterrorizantes.
Embora esta tradição esteja intimamente ligada à cultura e ao cinema dos Estados Unidos, nos últimos anos o Brasil tem se apropriado e criado os próprios significados para o Halloween – ou melhor, Dia das Bruxas –, o que se reflete também no fazer cinematográfico nacional.
Ainda que o Halloween tenha se tornado um símbolo bastante popular do terror, o gênero ultrapassa em muito essa data e suas representações típicas. Histórias de medo, assombrações e o confronto com o sobrenatural estão presentes em diferentes culturas, refletindo medos, crenças e contextos próprios de cada povo.
No Brasil, essas manifestações encontram terreno fértil no folclore, nas lendas regionais e nas tensões sociais, um campo rico para interpretações e narrativas singulares. Quem chama a atenção para este fato é Rodrigo Aragão, um dos principais realizadores do cinema de terror brasileiro, que conversou sobre este assunto com a Revista Curió.
“Eu acho muito interessante essa apropriação que nós estamos fazendo dessas datas, como o Halloween, que é uma época que se fala muito de terror estrangeiro e talvez seja a primeira vez que nós vamos ter, simultaneamente, três produções brasileiras de terror lançadas ao mesmo tempo”, destacou o diretor, referindo-se às estreias desta quinta-feira, dia 30 de outubro: O Porão na Rua do Grito (2022), Enterre Seus Mortos (2025) e A Própria Carne (2025).

Cineasta e técnico de efeitos especiais, Aragão é o nome por trás de alguns dos principais títulos do gênero no país, entre eles A Noite dos Chupacabras (2011) e Mar Negro (2014). Para ele, a diversidade é um dos elementos mais interessantes do terror nacional.
“O terror nacional se difere muito de outros movimentos, como o terror japonês, por exemplo, que tem aqueles fantasmas de mulheres cabeludas, ou a ultraviolência francesa… Eu acho que os nossos realizadores têm todos um estilo muito próprio. Se você pegar nomes como Marco Dutra, Juliana Rojas, Dennison Ramalho, são vertentes muito diferentes. Isso mostra a grande criatividade dos nossos realizadores, que são muito premiados mundo afora”, avalia o diretor.
Folclore e críticas sociais
Vale salientar a capacidade do cinema de atuar como ferramenta social, impactando na maneira como a sociedade reflete a realidade do seu tempo. As produções de horror, muito além de causar medo, possuem o potencial latente de trazer à tona questões sociais por meio dos subtextos narrativos. Nesse sentido, a utilização de alegorias é um dos caminhos mais utilizados para representar realidades concretas por meio da fantasia.
Em Prédio Vazio (2025), por exemplo, as tonalidades sépsias, o Edifício Magdalena degradado e a convivência entre os moradores funcionam como metáfora para o abandono e a decomposição das relações humanas, o que transforma o espaço físico em reflexo social. Outra produção que proporciona esta análise é A Mata Negra (2018), em que a presença do livro amaldiçoado em meio a uma floresta pode remeter à destruição ambiental, já que os feitiços liberados pela protagonista Clara são capazes de corromper a floresta.
Ainda nessa obra, fica nítido o debate sobre o conservadorismo religioso. A comunidade retratada no longa vive à margem da floresta, isolada e guiada por preceitos religiosos rígidos e, quando a ameaça sobrenatural surge, as reações da população expõem a hipocrisia e a violência do moralismo extremo. Esse aspecto pode ser personificado na figura dos líderes religiosos e nos personagens que utilizam a fé para controle e perseguição ao diferente, como a personagem de Clara, que apresenta questionamentos ao dogma.

Essa imersão em contextos profundamente brasileiros – como o embate entre religiosidade e crença popular – é também o que dá força e autenticidade ao cinema de Rodrigo Aragão. Ele acredita que “quanto mais regional, mais original é o nosso cinema aos olhos do mundo. Isso eu aprendi muito cedo, e essa é a grande diferença que nós podemos ter diante do mercado internacional, é ser muito regional, é ser muito brasileiro”.
Desse modo, o regionalismo e o imaginário popular seriam aspectos essenciais para consolidar a identidade plural do terror brasileiro. Afinal, há “uma grande vontade de dar ao público um prazer raro: ver o nosso povo, a nossa região e as nossas características dentro do cinema fantástico”, como avalia o cineasta. Essa busca por um olhar próprio, que une o fantástico ao cotidiano, também se reflete na forma como Aragão constrói suas narrativas, nas quais o elemento mágico surge não como fuga da realidade, mas como parte integrante dela.
“Às vezes, nosso cinema é muito focado só nas nossas mazelas. Então trazer um pouco dessa coisa fantástica e mágica, uma coisa que passei toda a minha juventude querendo ver, são elementos que faço questão de colocar nos meus filmes”, complementa.
Passado e futuro
Se hoje o terror nacional tem a possibilidade de explorar diversos caminhos, um dos motivos foi o pioneirismo de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que inaugurou o gênero no país na década de 1960, com o clássico À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964). No longa, o coveiro de unhas cumpridas desafia convenções sociais e, além do terror sobrenatural, apresenta um tipo de pavor que persiste ainda na atualidade: o da impunidade para sujeitos que desrespeitam qualquer tipo de bom senso ou limite em relação a seus pares.
“O Mojica me ensinou muito sobre generosidade. Eu tive a grande honra de trabalhar com ele, e a última vez que ele sentou numa cadeira de diretor foi numa produção minha, no Fábulas Negras (2015). Ele me ensinou demais sobre, muitas vezes, os problemas e os defeitos que acontecem durante a filmagem deixarem o filme único. Então, ele me tornou um diretor muito mais leve. Eu acho que qualquer pessoa que faz um filme de terror no Brasil deve um pedágio ao Mojica. Ele mostrou que é possível criar personagens assustadores legitimamente brasileiros, mostrou que é possível fazer terror com mais criatividade do que recursos”, afirma Rodrigo Aragão.

Em uma homenagem aos criadores do passado e do presente, o Canal Brasil exibe uma série de títulos de Mojica, Aragão, e de outros cineastas brasileiros de terror. Entre as produções que integram a programação estão Mata Negra (2018) e O Cemitério das Almas Perdidas (2021), bons exemplos das características destacadas por Aragão, como o uso de elementos regionais, o diálogo com o imaginário popular e a capacidade de unir medo e identidade cultural em narrativas marcadamente brasileiras.
Mais do que sustos e monstros, o terror brasileiro vem revelando um espelho das inquietações sociais e culturais do país. Ao revisitar mitos, lendas e medos locais, diretores como Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf e Joel Caetano ampliam o alcance do gênero, reafirmando que o horror também pode ser uma forma de reconhecer a própria identidade. Entre homenagens ao passado e novas produções que apontam para o futuro, o cinema de terror nacional segue vivo, pulsante e, sobretudo, cada vez mais brasileiro.



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