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Só depois do hit? A relação da cena belorizontina com seus próprios artistas

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 12 de ago.
  • 6 min de leitura

Por: FERSI

Última Atualização: 12/08/2025


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Resumo

O texto discute por que artistas de Belo Horizonte só ganham destaque após “estourarem” fora da cidade. A partir de festivais, mídias locais e hábitos de consumo, analisa como a curadoria, a falta de veículos especializados e o público contribuem para invisibilizar talentos locais e propõe reflexões sobre nosso papel nesse ciclo.


Introdução

“Por que a gente só valoriza o artista de Belo Horizonte quando ele estoura?”. Essa pergunta me atravessa toda vez que vejo uma multidão cantar em coro o refrão de alguém que, meses antes, tinha dificuldade de vender um show solo ou não estava em nenhum dos festivais da cidade. Tem algo de triste e recorrente nisso: para ser aclamado na cidade, o artista muitas vezes precisa sair dela. É como se o sucesso só tivesse valor quando reconhecido por outras praças, outras capitais e outras plateias.


Belo Horizonte é um celeiro de talentos. Tem música nas janelas, nos botecos, nos EPs lançados por artistas independentes, em eventos sem grandes investimentos de marcas (ou do poder público) e nos eventos gratuitos de ocupação cultural, feitos bem “na tora produções”. Mas, também é uma cidade que cobra muito daqueles que sonham em viver de arte, porque quem está aqui, criando, produzindo e insistindo na cena, raramente encontra estrutura para ser visto antes de “furar a bolha” ou do “viral”. 


Marina Sena

Começou na cena local com a banda Rosa Neon, mas só ganhou projeção nacional e foi considerada um grande nome da música brasileira depois de lançar sua carreira solo, com hits como “Por Supuesto” e “Tudo Pra Amar Você”. Só depois disso, Belo Horizonte realmente passou a reconhecê-la como uma das suas principais artistas, e seu nome passou a ser estampado nos festivais como a artista principal. 


Marina Sena, cantora e compositora mineira, nascida em Taiobeiras (MG). Sua música mistura MPB, pop e sonoridades eletrônicas, criando uma estética contemporânea e marcada por identidade visual forte.


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Djonga

Embora já fosse conhecido em BH, o rapper atingiu projeção nacional e reconhecimento crítico apenas após o lançamento dos álbuns O Menino Que Queria Ser Deus e Ladrão, e sua postura firme nas questões sociais. Só após esse sucesso, BH o consagrou como um dos maiores nomes da cidade.Djonga, rapper e compositor belo-horizontino, é um dos nomes mais influentes do rap nacional. Reconhecido pela lírica afiada e pela abordagem direta de questões sociais, raciais e políticas. 


Esse comportamento, que poderia ser lido como simples efeito do sucesso, revela algo mais profundo e estrutural: a forma como Belo Horizonte lida com sua produção cultural é marcada por um ciclo de apagamento e necessidade de validação externa. A cidade consome seus talentos com certo distanciamento, como quem espera uma chancela de legitimidade de fora para então reconhecer o valor que já existia aqui. Mas por quê?


Curadoria não é só escolha, é também manifesto político

Os festivais ocupam um lugar central na agenda cultural da cidade e a escolha dos artistas que se apresentam neles diz muito sobre o que (e quem) é valorizado. A programação ajuda a formar o que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de “gosto legítimo” — o conjunto de preferências que, em uma sociedade, é reconhecido como superior ou mais valioso, e que serve como referência para medir o que é considerado “bom” ou “ruim” em termos artísticos. Ele define quem merece o palco principal, o horário nobre, os holofotes. Por isso, a curadoria vai além da seleção artística, ela é também um gesto simbólico e afirma quem já tem reconhecimento e reforça, muitas vezes, quem ainda precisa “provar seu valor”.


Tomemos o Festival Sarará como exemplo: um dos maiores festivais da cidade, com visibilidade e financiamento robusto. A criação do Palco Samba, é uma tentativa de abrir espaço para as festas e espaços de samba da cidade, mas ainda reproduz uma separação entre o “centro” (os artistas consagrados no palco principal) e a “margem” (os artistas locais em palcos alternativos). Essa estrutura, mesmo com boas intenções, reforça a lógica do “quase lá”, do artista/festa/coletivo que ainda precisa ser visto como promissor antes de ser legitimado. 


Porém, um outro exemplo do Festival Sarará é o Circuito Cultural Sarará 2025, que destacou-se por criar pontes entre artistas locais e nomes de outras regiões, fortalecendo a rede de trocas e colaborações tão necessária para a cena de Belo Horizonte. No palco do CCBB, cantoras como Paige e Nath Rodrigues representaram a diversidade sonora da cidade, ao lado de artistas convidadas de fora, como Bruna Black (São Paulo) e Joyce Alane (Recife). Essa convivência no mesmo espaço possibilitou encontros artísticos e o compartilhamento de repertórios distintos, evidenciando a potência da cena feminina negra e periférica tanto local quanto nacionalmente.


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Em um cenário que ainda marginaliza a produção artística local, o Festival Novos Encontros propõe uma nova lógica de reconhecimento. Produzido por uma rede comprometida com a valorização real da cena de Belo Horizonte, o festival rompe com a lógica do reconhecimento tardio e aposta em um pertencimento imediato. Aqui, os artistas da cidade não ocupam o espaço como exceção, eles são o centro da proposta. A ideia é promover encontros potentes entre nomes de fora e talentos locais. Em 2024, o festival proporcionou conexões entre Mc Tha (SP) e Augusta Barna (MG), e Avuá (SP) com Nath Rodrigues (MG), que dividiram palco, repertório e vivências, em performances exclusivas para o festival.


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Mas, eventos como o Novos Encontros ainda são exceção. A maioria dos line-ups segue pautada por nomes que já carregam selo de sucesso nacional e quase nunca pelas potências emergentes que habitam os bares, esquinas, ou noites alternativas da cidade. A pergunta que fica é: até quando vamos chamar de “novidade” o que a cidade já viu, mas não valorizou?


Ouvir música nova virou um ato de resistência

Outro ponto crucial é a ausência de veículos e programas especializados e consistentes que acompanhem e documentem a produção musical local, principalmente a de novos artistas da cena, sem ser algo segmentado por gênero ou pelo sucesso do artista. Quando surge algo nesse sentido, é feito com poucos recursos e quase nenhum apoio institucional.


Essa falta de registro tem consequências diretas: a história se perde, os nomes desaparecem, os shows acontecem e ninguém fica sabendo. Para descobrir um artista novo ou se conectar com os artistas locais, é preciso seguir criadores de conteúdo que se conectam com o tema, viver no algoritmo dos eventos independentes ou contar com a sorte de cruzar com um story patrocinado ou um amigo convidando para ir ao evento. 

O efeito disso é brutal: artistas lançam EPs, clipes e projetos autorais com pouco ou nenhum retorno público. Não porque o trabalho seja ruim, mas porque ele simplesmente não consegue amplitude para chegar ao público que almeja, que não chega, não existe no imaginário coletivo e, consequentemente, não é consumido. O artista não tem o retorno desejado, principalmente, financeiro.

 

A lógica do “se vira”: quem consegue dar conta de tudo, sobrevive

Sem apoio consistente da crítica, da imprensa e das instituições, muitos artistas são empurrados para uma lógica individualista: eles precisam dar conta de tudo sozinhos. Cuidar da própria carreira, entender de tráfego pago, produzir conteúdo para redes, vender ingressos, definir sua persona digital, aprender a se comunicar como marca. A arte, nesse cenário, passa a ser tratada como produto e o artista como uma espécie de pequeno empreendedor multitarefa. 


Essa ideia de que o sucesso vem apenas do esforço individual é perigosa. Ela reforça uma visão meritocrática que ignora os diferentes pontos de partida de cada pessoa. Nem todo mundo tem as mesmas condições, apoios ou ferramentas para se manter na corrida.


Um cantor da periferia, uma compositora LGBTQIAPN+, uma banda formada por jovens negros e negras sem grana para investir em divulgação enfrentam barreiras muito mais duras do que quem já possui capital social, visibilidade ou rede de contatos. Valorizar só quem conseguiu "chegar lá" é, muitas vezes, ignorar todas as desigualdades que impedem tantos outros de também chegar.


Casas de shows e festas independentes como resistência e curadoria

Em um contexto onde os grandes palcos raramente se abrem para artistas em ascensão, as casas de show e espaços independentes de Belo Horizonte cumprem uma função vital na sustentação da cena musical local. Locais como A Autêntica, A Aquilombar, Catavento Cultural, O Tranquilo BH, Casa Outono e festas como: Baile da Bota, @bsurda, Festa Transa, Durval Sounds e nuCaos, não apenas oferecem/ofereceram estrutura para apresentações, mas também atuam como núcleos de curadoria, formação de público e circulação artística. A sobrevivência desses lugares é extremamente essencial para a vitalidade da cena cultural da cidade. 


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Beleza, e a gente enquanto público, faz o que com isso?

A verdade é que também temos responsabilidade. Porque a gente compartilha o single novo do artista de BH só quando ele já virou hype. A gente espera um selo assinar, um festival grande convidar, um famoso elogiar. E aí, sim, nos sentimos seguros para dizer: “ele é daqui”.


Mas por que não antes? Por que não quando o ingresso custa R$ 20,00 e o show acontece num quintal? Por que não enquanto ele ainda está testando formatos e pedindo ajuda para pagar o clipe? O nosso olhar também legitima. O nosso apoio também constrói.

Valorização não pode ser retroativa. É preciso existir enquanto o artista ainda é dúvida, ainda é risco, ainda é tentativa. Porque, senão, seguimos sendo a cidade que só reconhece depois do hit. E isso não é cuidado, é conveniência.


Uma cidade que reconhece seus artistas antes do sucesso é uma cidade que se pensa a partir de dentro, que fortalece sua memória, sua economia criativa, sua identidade coletiva. Porque o futuro da cena cultural não está nos grandes nomes. Está nos pequenos começos é ali que a gente precisa estar.

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