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Eu lírico queer na nova música brasileira: análise de canções com eu-lírico LGBTQIAPN+ a partir de trabalhos de artistas como D'água Negra, Luiza Brina e Viridiana

  • Foto do escritor: Revista Curió
    Revista Curió
  • 30 de jul.
  • 9 min de leitura

Por: Wagner Rodolfo

Última Atualização: 30/07/2025


D’água Negra por Louise Amendola
D’água Negra por Louise Amendola

A ausência histórica de referências LGBTQIAP+ na cultura mainstream impacta diretamente as possibilidades de existência e identificação de sujeitos dissidentes. Durante décadas, figuras como Ney Matogrosso ocuparam um lugar ambíguo na percepção pública — admiradas por seu talento, mas frequentemente alvos de comentários marcados por preconceito velado. Para quem viveu a juventude no início da década de 2010, ainda era raro encontrar artistas abertamente LGBTQIAP+ no circuito popular. No entanto, a partir de 2015, nomes como Jaloo, Leo Fressato, Liniker, As Baías (à época ainda acompanhadas da Cozinha Mineira), Linn da Quebrada, Davi Sabbag, Mel, Mateus Carrilho e Lineker (hoje Yantó) começaram a surgir com mais visibilidade, marcando uma virada importante na representatividade da música brasileira contemporânea.


É possível ser uma artista assumidamente LGBTQIAP+ (apesar do preconceito, apesar das exclusões em certos circuitos, apesar de muitos pesares) e cantar sobre isso (ou não). Em uma época não muito distante, era preciso utilizar certas metáforas para dizer o que seria “proibido” ou o que poderia ser censurado, como Renato Gonçalves trabalha em Elas Duas (GONÇALVES, 2016) quando cita o sutil “jogo de damas” da canção “Valeu”, de Marina Lima, ou — como ele diz — o erótico “vermelho de horizontes distintos” em “Ciúme de mim”, de Cláudia Dorei. Gonçalves comenta que essas referências só são compreendidas por quem é “entendido”, termo utilizado por muito tempo para designar o indivíduo homossexual. 


Entre os artistas contemporâneos, muitos vêm assumindo vozes líricas queers em suas canções — com ou sem a necessidade de explicitar essa dissidência — para abordar afetos, inquietações e experiências a partir de perspectivas LGBTQIAP+.


Este levantamento reúne alguns desses nomes, analisa suas composições e inclui declarações que aprofundam o entendimento sobre como esses artistas constroem narrativas dissidentes na música popular brasileira.


Um grupo que você precisa ficar de olho é o D’água Negra. O trio manauara, que mistura influências do jazz com música eletrônica, oscila entre o elegante e o bagaceira com muita classe. Lançaram um EP em 2021, o Erógena, trabalho que passa por assuntos desde o caos pandêmico (e o descaso que aconteceu neste país, no antigo governo) até outras subjetividades do grupo. Vale destacar que os três integrantes — Melka, Clariana e Belch — se identificam como pansexuais.


D’água Negra por Demi Brasil
D’água Negra por Demi Brasil

A canção “Yoga Gota Boca Ardente”, do trio D’água Negra, funciona quase como um áudio-ensaio. Em um trecho, o eu lírico narra: “Imagina quando você tá começando a conhecer aquele cara, é o primeiro encontro. Aí tu entra no apê dele, ele fica te olhando e tu olha pra ele. É tarde, é tarde, eu acho que tá uns 34 graus lá fora, tua pele tá até um pouco meio oleosa”. A letra se constrói por meio de uma fala cantada e declarada, num fluxo que mistura relato íntimo e encenação.


A composição começa com o eu lírico conversando com uma amiga sobre uma situação hipotética, mas, aos poucos, a narrativa se desloca para a primeira pessoa, como se a interlocução passasse a ser com o próprio objeto de desejo. A performance vocal, marcada por uma estética assumidamente bicha, investe em imagens sensoriais que aproximam a experiência do ouvinte a um episódio de aplicativo de encontros como o Grindr: “tu sabe que еle não é flor que se chеire. Aí tu olha assim pra ele, meio que de canto, e fala: ‘a saliva, o gosto, o gozo, o sopro que escorrega dessas tuas palavras aí me intriga, sabia?’”


Bruno Belchior ou Belch, integrante do D’água Negra, conta que “Yoga Gota Boca Ardente” nasceu no período pandêmico, e, inclusive, foi a primeira música do grupo. 


Belch conta: “eu estava no quarto, já enlouquecendo, tentando dar conta desse corpo e dessa experiência de isolamento em meio a essa loucura. Já estava um pouco cansado de qualquer tipo de estimulação corporal que eu poderia ter, falando de tesão mesmo. O tesão vinha e eu já estava cansado de não conseguir sair para ver pessoas, ir para dates… com saudades disso, de conhecer uma pessoa pela primeira vez. Sempre gostei muito de primeiros encontros”. E assim, a partir dessas vontades e sensações, Belch escreveu a letra (bem letruxiana - a pedido de sua parceira de banda) desta linda canção que encerra o EP, em cima dos beats produzidos por Clariana, um house bem eletrônico, que contém uma certa nostalgia.


Ao relembrar suas primeiras referências queer na música, Bruno Belchior cita Ney Matogrosso como a figura que mais o marcou, influenciado pelo avô, que tinha diversos discos do artista. “Sempre fiquei instigado pela teatralidade, pela piração, pela provocação corporal que ele tinha”, afirma. Belch também destaca que, com o tempo, os Secos e Molhados passaram a fazer ainda mais sentido em sua trajetória artística, influenciando diretamente alguns dos processos criativos do trio. O depoimento reforça como as referências queer do passado continuam reverberando na obra de artistas contemporâneos.


Em “Yoga Gota Boca Ardente”, o eu lírico aparece de forma escancaradamente bicha, sem recorrer a metáforas cifradas ou códigos como o “entendide”. Em contraste, outras canções sugerem identidades dissidentes de forma mais sutil — como no próximo exemplo abordado.


A canção “Back in Bahia”, de Luiza Brina, costuma ser interpretada por ouvintes como uma composição de teor romântico, com um eu lírico apaixonado — especialmente em versos como “And all the love songs that I wrote for you will make sense”. No entanto, segundo a própria artista, a canção surgiu de uma vivência muito específica e pessoal: um romance de verão vivido em Morro de São Paulo, na Bahia.


Com mais de uma década de carreira, Brina tem em sua discografia diversas composições que funcionam como verdadeiras canções-orações — criadas, segundo ela, a partir do desejo de aprender a rezar. Ao lado dessas obras de caráter espiritual e existencial, encontram-se também faixas mais afetivas, como “Back in Bahia”, que narra, com delicadeza e intensidade, o fim de um relacionamento sáfico.


A artista conta que rascunhou as canções de seu primeiro álbum, A Toada Vem É Pelo Vento (2011), enquanto viajava de catamarã, logo após viver esse breve e marcante envolvimento. Ao conhecer a história por trás da música, trechos como “And then you will notice you lost a great chance” ganham novas camadas de significado, revelando a dor e o orgulho de um coração lésbico em luto por um amor passageiro.


Luiza Brina por Sillas H
Luiza Brina por Sillas H

Interessante notar que, na letra, Luiza canta que “Mas então, um dia, quando você estiver de volta na Bahia, vai escutar aquele velho disco de Maria (Bethânia). Mas então, um dia, quando você estiver de volta na Bahia, vagando por aí, de mãos dadas com Maria” Em uma leitura rápida, pode-se interpretar que o amado estava andando de mão dadas com outra Maria, mas se tratava de uma amada. E mais curioso ainda é citar Maria Bethânia, uma referência que sempre teve um certo mistério em torno de sua sexualidade.


Ao relembrar suas primeiras referências LGBTQIAP+ na música, Luiza Brina menciona figuras que já apareciam, de maneira velada, em seu imaginário desde a infância. Entre elas estão Maria Bethânia e Gal Costa, artistas cuja sexualidade era frequentemente cercada de mistério. “Quando era mais criança, não tinha tantas referências assumidas. Por exemplo, havia um mistério acerca da Maria Bethânia e da Gal, que era dito, mas era meio ocultado. Desde pequena, era muito fã das duas e ficava com essa curiosidade, querendo saber se isso era verdade”, comenta.


Brina também cita Cássia Eller como uma de suas principais referências, destacando sua importância enquanto artista assumidamente lésbica no cenário musical brasileiro.


Se antes havia muitos mistérios sobre sexualidades e gêneros, hoje cada vez mais há  pluralidades de existências que possibilitam inúmeras referências queers na canção e, cada vez mais, temos, por exemplo, referências não-binárias nas artes. Essas referências estão aí há muito tempo, mas agora se posicionam dessa maneira, questionando o cis-tema.


Viridiana é uma artista trans-não-binária muito interessante de se acompanhar e vem construindo essa imagética queer desde seu trabalho Transfusão (2021).


Em 2023, a artista lançou a canção “Pérolas de Plástico”, que explora suas influências da house music e da música disco, passando por sua vivência: “eu sou a perdição com um cordão de pérolas de plástico, eu sou uma sereia travesti no meu império aquático”.


Viridiana por Stella Michalski
Viridiana por Stella Michalski

A partir de si e de refletir o seu corpo no mundo, Viridiana nos apresenta todas as possibilidades de suas plasticidades ao cruzar a cidade de um ponto A até um ponto B. A artista conta que a canção surgiu de um dia que o Uber estava muito caro e, então, ela decidiu caminhar pelas ruas de Porto Alegre. Nisto, refletiu sobre o pseudo glamour da artista pop independente enquanto caminhava, e o signo das “pérolas de plástico” vieram à sua cabeça: “a expressão ‘pérolas de plástico’ surgiu como uma coisa chique-fake, uma coisa pseudo-glamour e, ao mesmo tempo, essa imagem da pérola, para mim, remete a uma feminilidade muito tradicional”. Viridiana ainda completa: “e ela ser de plástico incorpora uma coisa que construo desde meus primeiros trabalhos como Viridiana, que é essa coisa de buscar uma plasticidade, uma coisa androide, fugindo dessa feminilidade tradicional”.


Os signos explorados por Viridiana em suas composições carregam grande potência simbólica e revelam formas de existência que rompem com os padrões normativos. Expressões como “sereia-travesti”, “rainha” e “vênus em revolução” traduzem não apenas sua identidade, mas também uma poética queer que afirma o direito à autoimagem e à dissidência.


Ao ser questionada sobre suas primeiras referências, a artista cita de imediato nomes como David Bowie e Madonna — figuras centrais na construção de estéticas que desafiam convenções de gênero e identidade. Viridiana também destaca o impacto de ter assistido à atriz Laverne Cox na série Orange is the New Black, ressaltando sua importância como símbolo de representatividade trans e pioneira ao se tornar a primeira mulher trans a inspirar uma boneca Barbie oficial da Mattel.


Contudo, o mais bonito na fala da Viridiana foi saber que uma de suas grandes referências veio da própria família: “quando eu tento resgatar essas primeiras referências, acho que estaria sendo muito desonesta se não falasse que a primeira pessoa que sentou e falou comigo sobre tudo isso foi a minha irmã mais velha, a Florença, que é uma mulher lésbica.” Viridiana conta que foi um processo muito difícil para a família, mas que, para ela, foi algo normal e conversado de maneira franca com a irmã. “De certa forma, minha primeira referência LGBT foi a minha irmã, e acho que isso é um baita de um privilégio, porque é uma pessoa que amo muito, uma pessoa muito próxima e uma pessoa que me ensina até hoje. Inclusive, ela é a designer do meu disco Transfusão, ela faz a maioria dos meus cartazes de shows, quem fez meu merchandising foi ela, então a gente está juntas até hoje! Tá vendo? Famílias LGTBs… prosperando!”


A presença do eu lírico queer na música contemporânea é vasta e diversa, apresentando inúmeros exemplos que permitem leituras profundas sobre identidade, gênero e resistência. Um dos destaques nesse panorama é o trabalho da rapper Bixarte, especialmente o álbum Traviarcado, que aborda diretamente as questões da vivência trans e coloca em foco as narrativas de homens trans na música brasileira.


Na faixa “Carta de Advertência”, em parceria com Julian — um dos nomes mais relevantes da cena independente paraibana — e o MC Winnit, Bixarte afirma com contundência: “Que você me queria calado, sempre achando que meu corpo que tá enganado, mas pra ser um homem eu não preciso ter um falo. Eu falo até não ter, mas você tá suicidado. Eu não vou baixar minha cabeça não. Vai se acostumar a ver transmac com mic na mão”. A letra funciona como uma resposta direta à transfobia, reivindicando voz, presença e protagonismo para os homens trans no rap nacional.


Diversas canções da música brasileira contemporânea trazem à tona eu líricos queers em suas mais variadas formas. Linn da Quebrada, por exemplo, explicita sua identidade em faixas como “Quem Soul Eu” — “Muito prazer, eu sou a nova Eva, filha das travas, obra das trevas”. Em “Onda”, da artista Àiyé, o eu lírico sáfico é direto: “cê fica mais linda sem essa onda de caça e caçador”. Já Deize Tigrona evoca o desejo lésbico de forma irreverente em “Suruba das meninas”, com o verso “Suruba das meninas, só entra dedo e língua”.


A diversidade de vozes também aparece na canção “I Love Meu Jeito de Bi”, da banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, que assume a bissexualidade como centro da narrativa. Bruna Mendez, por sua vez, canta em “Mapa” a intimidade do toque feminino: “Me sinto segura entre seus seios”.


Para além das letras, a representatividade LGBTQIAP+ também se manifesta nas próprias trajetórias dos artistas, cujas existências e trabalhos afirmam identidades dissidentes. É o caso de nomes como Viridiana, Jáder, Ana Frango Elétrico, Klüber, JUPI77ER, Gabrelú, Venusto, Lindsey Vianna, Zerzil e Gali Galó, que compõem um amplo panorama de expressões trans, sejam femininas, masculinas ou não-binárias.


Seriam necessárias muitas páginas para dar conta da imensidão de artistas e canções com eus líricos LGBTQIAP+ —  uma lista que só cresce e desmonta qualquer argumento de que festivais não encontram artistas dissidentes para compor seus line-ups, algo que, décadas atrás, realmente era mais difícil de se ver.


Do eu lírico bicha de uma banda pansexual narrando um encontro, ao eu lírico sapatão expressando a dor de um amor de verão na Bahia, passando por artistas não-bináries cantando sobre o próprio ser no mundo e suas “pérolas de plástico”, a multiplicidade de vozes e narrativas evidencia a importância de haver referências diversas para subjetividades igualmente diversas. Nem todes têm a sorte de crescer com uma Florença dentro de casa — mas, com essas vozes em circulação, mais pessoas podem encontrar espelhos possíveis.


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